É grave a crise, e a tal ponto que a filósofa Nancy Fraser prefere chamá-la de policrise. “Vivemos uma crise em toda a ordem social”, diz a americana de 77 anos, um dos nomes mais respeitados da Teoria Crítica na atualidade. Autora de “Destinos do Feminismo: do capitalismo administrado pelo Estado à crise neoliberal”, recém-lançado no Brasil pela Boitempo, ela defende que só um bloco contra-hegemônico em que a perspectiva feminista se una a outras será capaz de oferecer respostas em um mundo em que representatividade importa, mas a materialidade e as estruturas também.
Em entrevista por vídeo ao GLOBO de Nova York, onde é professora titular da New School University, Fraser explica por que o aborto e a justiça reprodutiva se tornaram questões centrais para a contemporaneidade e relembra o episódio em que, após criticar a ação militar de Israel em Gaza, teve um prêmio retirado pela Universidade de Colônia — mesmo sendo judia.
Seu livro indica que o feminismo está numa encruzilhada. Está?
Exatamente. Em momentos da nossa História, as feministas deram uma guinada radical, mas em outros se aliaram a forças neoliberais, o que foi um erro. É hora de traçarmos uma direção anticapitalista.
Você vê forças feministas fazendo isso?
Nos EUA, essa força é o feminismo que rejeita o avanço individual das mulheres pregado pelo feminismo liberal e corporativo de Sheryl Sandberg (ex-COO da Meta e autora do livro “Faça acontecer”). É o feminismo para todas: as trabalhadoras, negras, lésbicas e trans.
Um feminismo como o do Sul Global?
Sim. Fiquei animada nos últimos anos ao ver o que aconteceu na América Latina, mas também na Espanha, onde o feminismo se tornou a face antiausteridade. Vocês conectaram questões econômicas centrais à violência de gênero.
É difícil criar conexões quando a maior preocupação é evitar retrocessos, como acontece no Brasil e nos EUA na questão do direito ao aborto.
Nos EUA, estamos preocupadas, por boas razões, com o aborto porque acabamos de perder Roe v. Wade. Mas precisamos tratar da saúde reprodutiva e da saúde em geral, ligando-as ao cotidiano dos trabalhadores, que são forçados a depender de créditos e empréstimos e estão presos a dívidas estudantis.
No livro, você cita greves feministas em Polônia, Espanha e Argentina. Se pensarmos nas manifestações de mulheres ocorridas em Brasil, Chile, EUA e Irã desde 2017, estamos diante da maior força progressista atual?
Isso tudo foi fantástico, e é isso. Mas faço uma ressalva em relação ao Irã. O movimento “Mulher, Vida, Liberdade” criou dificuldades para o regime, que não sabe lidar com elas já que sempre se posicionou como defensor das mulheres, mesmo não sendo. Só que a situação iraniana pode ser parecida com o que aconteceu nas ditaduras latino-americanas, quando as forças de esquerda, todas comandadas por homens, foram tão reprimidas que as mulheres assumiram a resistência. Veremos.
O direito ao aborto está sob ataque nos EUA e no Brasil, e o Reino Unido estuda mudar sua legislação. O Japão cria programas de incentivo à natalidade, e Elon Musk grita nas redes sobre um “colapso populacional”. Diante desse quadro, a justiça reprodutiva pode conectar os movimentos de mulheres em todo o mundo?
Deixe-me acrescentar mais um exemplo. Xi Jinping, o líder chinês, disse que a China deve se tornar uma nação fértil. Vão dar novos incentivos para que as mulheres dediquem mais tempo e energia à maternidade e menos ao trabalho remunerado, o que é uma reviravolta gigantesca no país que teve durante tanto tempo a política de filho único. Os chineses começam a ver escassez de mão de obra e uma população envelhecida que precisa ser sustentada.
O direito ao aborto, então, não é apenas um tema da guerra cultural.
Parte dessa discussão, como na China, é o capital preocupado com a força de trabalho. Mas há um componente racial, sobretudo nos EUA e na Europa, onde a ansiedade sobre o declínio na taxa de natalidade da parcela branca da população se une ao medo de que os não-brancos que chegam pelas fronteiras tenham mais filhos. Essa discussão serve também para apresentar o liberalismo como uma salvação, só que ele não vai nos salvar porque reluta em olhar as estruturas do capitalismo. Por fim, essa discussão serve para criar conflitos que beneficiam a extrema direita e comunidades religiosas. Por outro lado, para as vidas das mulheres, a guerra cultural é real e material e, por isso, temos de defender a justiça reprodutiva.
Não se trata apenas de exigir igualdade entre homens e mulheres, não é mesmo?
O que significa dizer que mulheres e homens são iguais? Que as mulheres deveriam ser iguais aos homens de sua classe e cor, o que não é adequado no cenário atual. Vivemos uma crise em toda a ordem social. É uma policrise porque combina as crises da democracia, a ecológica, a econômica e da reprodução social. Por isso, a perspectiva feminista tem de ser integrada a essas outras. E faz parte do nosso trabalho garantir que as questões de gênero não sejam abandonadas.
Precisamos criar essas conexões porque as mulheres, sobretudo as não-brancas, são as mais afetadas por todas essas crises?
Sim, mas não só. Uma razão é que não podemos vencer sozinhas. Outra é que o feminismo que deixa de lado as questões de classe, raça, ecologia e sexualidade se torna apenas o feminismo corporativo. Vou recorrer a Antonio Gramsci (filósofo italiano, preso pelo regime fascista de Mussolini e autor da teoria da hegemonia cultural): temos que criar um bloco contra-hegemônico de todas as forças que estão do lado de uma mudança estrutural profunda e emancipatória.
O que conecta todas essas frentes?
Para mim é a luta anticapitalista. Sugamos a riqueza da natureza e não a repomos. As megacorporações são incentivadas a tirar a riqueza do trabalho reprodutivo não remunerado ou mal pago das mulheres e das populações racializadas. De onde mais você conseguirá trabalhadores se não tiver as pessoas certas dando-lhes à luz e cuidando deles?
Quais as alternativas?
Não deveríamos nos preocupar agora em defender uma maneira correta de viver, mas em criar espaços onde todos tenham acesso à esperança necessária, aos cuidados de saúde, ao sustento e à segurança. Houve um período em que movimentos sociais que considero profundamente emancipatórios enfatizaram demais o discurso cultural e perderam a visão ampla das instituições e estruturas que geram os problemas de representação. Precisamos de um equilíbrio entre o material, o institucional, o estrutural e as questões de representação e visibilidade.
Você acha que enfatizamos demais movimentos como o #MeToo?
Esse é um caso interessante. No fundo, o #MeToo é um movimento de trabalhadoras por um local de trabalho livre de agressões, assédio e abuso de poder. Mas o foco, especialmente na mídia, foi nas estrelas de Hollywood. É claro que elas também são trabalhadoras, mas quase não falamos das faxineiras, das agricultoras e das imigrantes. Isso deve ter acontecido apenas no caso de Dominic Strauss-Kahn (ex-diretor do FMI, que perdeu o cargo após ser denunciado por assédio sexual pela camareira de um hotel). Se adotássemos a perspectiva de gênero associada à perspectiva de classe, veríamos mais casos como esse.
No Brasil, conservadores usam vocabulário feminista, trazendo para seus discursos expressões como "violência política de gênero" e há até apelos por um movimento de mulheres conservadoras. Ao mesmo tempo, esses grupos são contrários ao aborto legal e à justiça reprodutiva. O quão contraditório é isso?
Isso também acontece nos EUA. O grupo mais propenso a fazer esse tipo de coisa são os cristãos protestantes, os evangélicos, que afirmam serem os defensores da família contra todas as forças liberais que promovem o individualismo. É uma orientação familiar comunitária em que as mulheres devem colocar filhos, maridos e famílias à frente de suas ambições individuais para serem felizes. É muito parecido com o exemplo do Irã, onde o regime defende a modéstia das mulheres e a felicidade que a vida familiar pode trazer. A ironia é que houve feministas liberais para quem a família era patriarcal e, portanto, deveríamos acabar com ela. Até que as feministas negras lembraram que as famílias também ajudaram a constituir a defesa contra a sociedade racista, mesmo com seus elementos patriarcais internos.
No Brasil e nos EUA, a política de identidade está continuamente sob escrutínio. Mas não são os homens brancos, heterossexuais e cisgênero os que mais protegem e promovem sua identidade?
Claro que sim. Hoje, os identitários mais óbvios são os racistas, os cristãos, os apoiadores de Trump e de Bolsonaro. No lado progressista, o problema está na expressão: o que significa política de identidade? É trazer à tona as profundas divisões estruturais criadas pelo capitalismo em torno de gênero, raça e classe? Se for isso, temos que prestar atenção. Agora, se for uma política que essencialmente enfatiza a representação cultural em detrimento de coisas materiais e institucionais, então não quero isso.
A Universidade de Colônia retirou um prêmio que daria a você depois que se posicionou contra a ação israelense em Gaza. O que aconteceu?
Fui nomeada “Professor Albertus Magnus”, mas o reitor retirou o prêmio quando me declarei contrária à ação de Israel em Gaza. Há uma série de cancelamentos envolvendo acadêmicos estrangeiros de alto nível na Alemanha, incluindo conferências e festivais literários. Cada vez que isso acontece, mais pessoas questionam a ideia de que qualquer crítica a Israel seja antissemitismo.
Mesmo você sendo judia?
Cancelam alguém como eu em nome da responsabilidade da Alemanha com os judeus. Mas eu questiono: por quais judeus eles são responsáveis? Todos nós ou apenas os governantes de Israel? Eu me identifico com a orientação universalista do Judaísmo, que pode ser encontrada em pensadores como Maimônides, Spinoza, Heine e Freud. É uma tradição que critica a injustiça em qualquer lugar, incluindo a perpetrada hoje pelo governo israelense.
Você vê uma tentativa de silenciar as vozes de judeus progressistas?
Sim, e de silenciar progressistas em geral. Nos Estados Unidos, foi surpreendente a rapidez com que a polícia chegou às universidades para desmobilizar os acampamentos dos estudantes. É como se toda a década de 1960 ou 70 tivesse sido reduzida a duas ou três semanas. Nossa esfera pública está dividida, e é novo que vozes palestinas e muçulmanas sejam ouvidas. O debate é intenso, público, amplo e geral. Fico feliz que isso esteja finalmente acontecendo.
‘Destinos do feminismo: do capitalismo administrado pelo Estado à crise neoliberal’
Autora: Nancy Fraser. Tradutor: Diogo Faia Fagundes. Editora: Boitempo. Páginas: 288. Preço: R$ 87.