Cultura
PUBLICIDADE
Por — São Paulo

Quando souberam que o escritor português Afonso Cruz participaria da Feira do Livro de Santa Maria, em maio do ano passado, os funcionários da livraria Do Arco da Velha, em Caxias do Sul, perguntaram se ele não poderia dar uma passada lá antes. O autor tem um público robusto na cidade, há até um fã-clube informal de leitoras, que se denominam “as afonsetes”. Cruz foi de Porto Alegre a Caxias do Sul de carona com clientes da livraria, que lotou naquele sábado. Foi preciso instalar um telão na garagem do vizinho para acolher parte do público.

— A dedicação era tanta que era impossível recusar o convite — conta Cruz, de 53 anos, que vive nos arredores de Casa Branca, uma aldeia no Alentejo.

O português é autor do título mais vendido na livraria caxiense em 2023: “Vamos comprar um poeta.” Ambientado num mundo onde tudo é quantificado (até tempo de um beijo) e mesmo os afetos devem “trazer dividendos”, o romance é protagonizado por uma menina que implora ao pai para comprar um poeta. Soltando metáforas a torto e a direito e rabiscando versos nas paredes, o poeta põe a casa de pernas para o ar: o pai vai à falência, a mãe se rebela e a filha se converte em uma “inutilista” (“pensava em coisas só pela sua beleza e não queria saber do seu valor monetário ou instrumental”).

Proselitismo

Espécie de fábula em defesa da cultura, o livro transformou Cruz num best-seller no Brasil (mais de 50 mil cópias vendidas desde 2020). Não à toa, ele está sempre por aqui. Mês passado, participou do Festival Literário de Araxá, do Festival da Palavra, em Curitiba, e de um evento na Universidade Federal de Santa Catarina. Editor da Dublinense, Gustavo Faraon conta que às vezes Cruz está no Brasil e ele nem sabe — e que o autor topa os eventos mais inusitados. Em 2022, participou um debate na Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA).

“Vamos comprar um poeta” ensina que o trabalho de quem faz versos é criar uma janela com vista para o mar onde antes havia uma parede. Para a psiquiatra Betina Kruter, que apresentou a obra de Cruz aos colegas da SPPA, profissionais da saúde mental tentam ajudar pacientes a fazer o mesmo.

— Esses encontros relativamente inusitados entre disciplinas diferentes são sempre inspiradores. Em Portugal, me convidaram para um congresso de cardiologistas. Quem melhor do que um romancista ou um poeta para falar do coração? — lembra o escritor.

O público de Cruz é diverso. “Vamos comprar um poeta” foi enviado aos membros que têm entre 10 e 13 anos do clube de assinatura Leiturinha e adotado por escolas. Faraon acredita que o romance encantou os brasileiros com seu proselitismo poético porque chegou ao país num período de ataques à cultura, quando os livros se tornaram “símbolos de resistência”.

O sucesso do poetinha inutilista ajuda a vender os outros títulos do português, como “Nem todas as baleias voam”, “Para onde vão os guarda-chuvas” e o recém-lançado “O vício dos livros”, no qual ele aborda sua compulsão literária.

— Aos 12 anos, descobri as prateleiras do meu pai, que estavam repletas de livros proibidos pela ditadura salazarista, que haviam sido comprados na clandestinidade — diz ele. — Para ir à escola, eu podia apanhar um autocarro e depois um metrô (ele pronuncia “métro”, à lusitana) e andar um pouco. Mas eu escolhia apanhar um autocarro, que demorava 20 minutos, meia hora a mais para chegar, para ter mais tempo para ler.

A bibliomania de Cruz é tamanha que, quando ainda vivia em Lisboa, ele mudava de apartamento quando não sobrava mais espaço para os livros. No campo alentejano, teve o mesmo problema. A solução foi transferir dois mil volumes para a biblioteca da Era Uma Voz, instituição cultural de Casa Branca que ajudou a fundar. Ele cogita abrir toda a sua biblioteca ao público, inclusive as obras que continuam em sua casa, mas falta tempo para catalogá-las.

Pelo que o GLOBO pôde observar das estantes de Cruz durante a conversa por vídeo, o português talvez corra o mesmo risco de Al-Jahiz, sábio árabe mencionado em “O vício dos livros” que viveu entre os séculos VIII e IX e morreu soterrado pela própria biblioteca.

Há outros causos insólitos em “O vício dos livros”. Cruz diz que um leitor nunca morre antes de acabar o livro que está lendo (no fim de junho, o escritor tentava afastar a indesejada das gentes com “A dimensão estética”, do filósofo alemão Herbert Marcuse). Ele conta que um colombiano arrumou uma namorada graças a uma obra sua. E que o avô, preso e torturado pela ditadura salazarista, lhe deixou um livro sobre o período com a seguinte dedicatória: “Para o meu neto, para que ele perceba um pouco daquilo que eu passei.” Ele nunca falava sobre seu passado político.

Combustível

Cruz já trabalhou com cinema, gravou quatro álbuns com a banda The Soaked Lamb (influenciada pelo jazz e pelo blues americanos) e lançou mais de 30 livros em prosa. Mas gosta mesmo é de poesia. Ele até parece um poeta, de acordo com a definição dada por seus livros. Os versejadores são descritos como barbudos “subversivos” que usam óculos (Cruz depende deles para ler), inventam coisas e gostam de metáforas.

— Já tive um livro de poemas pronto para sair, mas liguei para a editora e disse que não tinha coragem. Escrevo poesia, leio poesia, a poesia é o meu combustível, mas não consigo me distanciar dos poemas que escrevo, o que não acontece com a prosa, que pode existir sem ser trabalhada até o pormenor. Não tenho a menor ideia se meus poemas são bons ou medíocres — admite.

Cruz incluiu aqueles versos que estavam na boca da gráfica num dos volumes de sua “Enciclopédia da estória universal” (inédita no Brasil), onde tudo é inventado. Atribuiu-os a uma freira carmelita cujos devaneios eróticos eram dirigidos a Deus. Todavia, ele garante que um dia terá coragem de assinar os próprios poemas. Leitores não hão de faltar.

Serviço:

‘O vício dos livros'

Autor: Afonso Cruz. Editora: Dublinense. Páginas: 96. Preço: R$59,90.

‘Vamos comprar um poeta’

Autor: Afonso Cruz. Editora: Dublinense. Páginas: 96. Preço: R$49,90.

Mais recente Próxima Teatro Carlos Gomes, no Rio, é reinaugurado após dois anos em reforma
Mais do Globo

Agressão aconteceu durante partida entre Portugal e Eslovênia; Uefa condenou violência

Polícia alemã investiga vídeo em que torcedor é agredido por segurança da Eurocopa; veja

A Lua nesta quinta-feira (4) está em sua fase minguante; veja calendário das fases lunar para o mês de junho

Lua hoje: veja a fase lunar desta quinta-feira (4)

Procedimentos on-line automáticos e ineficácia de filtros levam a disparada na concessão de BPC e auxílio-doença

Revisão em benefícios da Previdência é essencial para controle de gastos

Centroavante atuou por 27 minutos na segunda etapa e deu ótima assistência para Bruno Henrique

Tite explica Pedro no banco de reservas na vitória do Flamengo contra o Atlético-MG: 'Não sou maluco, ele ia estourar'

Transparência e clareza ajudaram a dissipar dúvidas, facilitando a aceitação das mudanças propostas pelo Plano Real

Comunicação é estratégica na economia contemporânea

Esperamos que a regulamentação da reforma tributária siga princípios de desburocratização, simplificação e paridade

É importante reconhecer a importância da solidez fiscal

Influenciadora brigou com o pai que não aceitava bem o seu relacionamento com o antigo marido, com quem teve um filho, e se envolveu conflitos familiares por política

Filha de Leonardo, Jéssica Beatriz Costa já teve desentendimentos com o pai e João Guilherme; entenda

Demora na definição do vice da chapa republicana está ligada à possível substituição do democrata na disputa pela Casa Branca; favorita entre os nomes cogitados, a vice Kamala Harris pode atrair os 'eleitores nem-nem'

Análise: Silêncio de Donald Trump revela tanto quanto a arrastada cerimônia de adeus de Joe Biden

Sob liderança de Keir Starmer, sigla de esquerda aproximou-se do centro e chega à disputa com eleitorado consolidado; Sunak tenta manter ânimo governista, apesar de avanço da extrema direita

Reino Unido vai às urnas com Partido Conservador em crise e trabalhista favorito pela primeira vez em 14 anos

A abstinência sexual deles durou dias, meses ou até mesmo anos

Folgosi, Bieber e Baby: os famosos que afirmam já ter ficado sem sexo