Não se pode contar a história do Rio sem falar do jogo do bicho. É o que afirma o historiador Luiz Antonio Simas em seu mais novo livro, “Maldito invento dum baronete”, que acaba de sair pela editora Mórula.
Arraigada na cultura brasileira, e sobretudo na carioca, uma das mais antigas loterias do país, porém, vive um paradoxo. Simas e outros estudiosos apontam que ela perdeu adeptos entre as novas gerações e, em tempos de bets virtuais e máquinas de caça-níquel, já não traz tanta rentabilidade aos banqueiros. Por outro lado, segue relevante no imaginário, algo atestado pela grande repercussão de dois documentários do Globoplay: “Doutor Castor”, sobre o poderoso bicheiro Castor de Andrade; e “Vale o escrito”, que cobre a guerra entre as famílias que controlam o bicho no Rio.
Esta última popularizou seus personagens, gerando memes nas redes e fantasias no último carnaval. A trama real inspirou ainda uma futura série ficcional para a Netflix, que terá produção de Heitor Dhalia.
Fronteira tênue
O livro de Simas investiga as origens do jogo e mostra por que, mais de 120 anos depois de sua criação, seu universo ainda fascina. Proibida desde 1895, a atividade reverbera grandes contradições da nossa sociedade, como as relações entre o poder público e a contravenção, e a tênue fronteira entre a ilegalidade e o corriqueiro
— O livro tem uma preocupação de evitar duas visões extremas sobre o jogo do bicho — diz Simas. — Uma é a excessiva romantização, considerando que ele tem ligação com uma amplitude de atividades criminosas. A outra é evitar a criminalização simples, desconsiderando que é um jogo com uma rica história e que está conectado a diversos elementos da sociedade e da cultura. A trajetória do bicho se mistura à do futebol, à do samba e à das religiões de matrizes africanas.
![Capa de "Maldito invento dum baronete - Uma breve história do jogo do bicho" — Foto: Divulgação](https://s2-oglobo.glbimg.com/deFE5VnudOU9n64X906YK9wYvp8=/0x0:667x1000/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/j/r/L3DHKVTruNJ2ksqRTIwQ/81lwcti7w8l.-ac-uf1000-1000-ql80-.jpg)
Criado pelo Barão de Drummond, o jogo do bicho sempre foi presente na produção cultural brasileira. É citado em teatros de revista do século XIX, aparece em versos de Olavo Bilac (que o descreveu como “Praga maldita, praga danada”), e é analisado em crônicas de Machado de Assis, Rachel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade. Novelas de TV já tiveram personagens bicheiros nos anos 1970 e 1980 e centenas de canções populares fazem referência ao bicho. E não se pode esquecer, é claro, a ligação com o carnaval.
Simas remonta aos primórdios do jogo, surgido em 1892 como uma rifa criada para promover o zoológico do barão João Batista de Drummond, em Vila Isabel (ver quadro na página anterior). O autor acompanha a popularização da loteria, que se destacou em relação aos outros jogos legalizados ao usar a imagem de animais. Uma peculiaridade que toca fundo no inconsciente coletivo, já que os apostadores sonham com os bichos nos quais vão jogar.
![Luiz Antonio Simas — Foto: Guito Moreto/ Agência O GLOBO](https://s2-oglobo.glbimg.com/ntNnvQEexhsSwtCaY-VUK3X57Yg=/0x0:840x1260/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/T/e/7G6eyGQUaZRQJbqh0vuQ/104310336-zn-rio-de-janeiro-rj-14-09-2023-educacao-entrevista-com-o-historiador-luiz-antonio.jpg)
— É um jogo que une o aspecto lúdico dos bichos e o onírico dos sonhos — diz Simas. — Mesmo proibida, a atividade se popularizou e se tornou uma manifestação da nossa cultura urbana.
Diversas expressões ainda hoje correntes têm origem no universo do jogo do bicho, especialmente no cruzamento com o futebol. O dirigente “paga o bicho” para o time vencedor. A “vaquinha” faz alusão ao prêmio máximo da loteria, o número 25, da vaca. E “deu zebra” era uma expressão usada pelos apostadores descontentes com os resultados — o animal não aparece nas opções de aposta. Foi usada pela primeira vez no futebol em 1964, quando o técnico Gentil Cardoso profetizou a improvável vitória de sua Portuguesa Carioca contra o Vasco da Gama.
Saudosismo pop
Mesmo com toda a influência na nossa cultura, o jogo em si ruma para a irrelevância, ou como fachada para outras ilegalidades mais pesadas, apontam pesquisadores. Simas fez um teste enquanto escrevia o livro. Parou na frente de uma banca e passou algumas horas observando a faixa etária dos apostadores.
— Só aparecia gente de 70 anos para cima — diz Simas. — Já faz um tempo que o jogo do bicho não conseguiu renovar o seu público. A cúpula do bicho sabe disso. Por isso continua estendendo os tentáculos em outras atividades criminosas, como lavagem de dinheiro e tráfico de armas.
![Desfile da Unidos de Bangu mostrou a ligação de Castor de Andrade com o futebol e as escolas de samba em 2022 — Foto: Pedro Siqueira/Divulgação](https://s2-oglobo.glbimg.com/DpByahcq2ceJEzjq3D9l4k6s6ok=/0x0:720x480/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/A/n/9g5tnASLAgsTiUrOsphQ/98684026-fotos-do-barracao-da-unidos-de-bangu-legenda-unidos-de-bangu-vai-contar-a-historia-de-b.jpg)
A decadência do jogo e o desaparecimento de bicheiros ilustres, assim como a idade avançada dos sobreviventes da velha guarda, trouxe outro olhar para a prática. A série documental “Doutor Castor”, de Marco Antônio Araújo, resgatou a figura de Castor de Andrade, morto em 1997. Antigas imagens do ex-patrono da escola Mocidade Independente de Padre Miguel e do Bangu Atlético Clube, viralizaram nas redes. O folclórico bicheiro aparece invadindo uma partida de futebol com arma na mão para “conversar com o juiz”. A camisa retrô do Bangu (com o símbolo do castor no peito) é um hit nas ruas do Rio.
— Hoje o imaginário do bicho se mantém muito em função do saudosismo — diz o historiador Felipe Magalhães, autor de “Ganhou, Leva!: o Jogo do Bicho no Rio de Janeiro (1890-1960)”, referência de diversos trabalhos acadêmicos. — Figuras como Castor lembram uma época em que banqueiros faziam pactos de não agressão. A tendência é romantizar esse tempo que já passou, porque existe a ideia de que antigamente era melhor.
Local e universal
O sucesso da série documental “Vale o escrito”, que deve ganhar em breve uma continuação, comprova que o interesse pelo bicho vai além dos seus símbolos mais tradicionais. A produção apresenta as conexões do jogo com a criminalidade urbana, trazendo entrevistas com nomes-chave da contravenção, normalmente arredios às câmera.
Idealizador e codiretor da série, o jornalista Fellipe Awi tinha dúvidas de que uma prática tão local pudesse atrair o espectador de outros estados. Radicado em São Paulo, ele logo percebeu que, mesmo fora do Rio, o público foi fisgado por personagens da velha cúpula, como Capitão Guimarães e Piruinha, além das gêmeas Shanna e Tamara Garcia, e Bernardo Bello, considerados herdeiros de Miro e seu filho Maninho Garcia.
— São personagens que fascinam o público de qualquer estado ou país — avalia Awi. — São figuras que desfilam todo ano na Sapucaí, não se escondem, mas por trás deles mantêm um negócio violento e folclórico. E também tem os mais jovens, que não têm a graça de um Piruinha, mas têm o cinismo. Falam do negócio ilegal como se fosse legal.
![José Caruzzo Escafura, o Piruinha, durante depoimento à série 'Vale o escrito', do Globoplay — Foto: Reprodução / Globoplay](https://s2-oglobo.glbimg.com/palKSH_u3cQSTUHa54H6BPotUVM=/0x0:922x808/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/B/J/eW04sIT1aoBTkn6ofxJg/106758627-jose-caruzzo-escafura-o-piruinha-um-dos-chefes-do-jogo-do-bicho-no-rio-foto-reproduc.jpg)
O jornalista lembra que, após aparecer até nas novelas, o bicho andava sumido. A prisão de bicheiros tradicionais dos anos 1990 quebrou o glamour e tornou um tanto constrangedora a associação com essas figuras.
— A dramaturgia aproveitou o bicheiro romântico no passado, agora os arcos dramáticos mais interessantes estão explorando o lado violento — diz Awi. — É também uma maneira de entender as transformações na segurança pública no país.
Projeto de Lei
Awi e Simas acreditam que a cúpula do bicho não tem interesse em ver a atividade legalizada pelo projeto de lei (PL 2234/2022) que autoriza o funcionamento de bingos e de cassinos e regulariza jogos de azar e de apostas. O PL foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e segue para análise do Plenário do Senado.
— Me parece que o bicho não foi proibido porque o crime se apoderou dele, e sim que o crime se apoderou dele porque o jogo foi proibido. — diz Simas. — Todas as outras loterias da época eram legais, por que o bicho se tornou ilegal? Acredito que, no momento em que ele ganha as ruas, há uma tentativa da República de criminalizar a ludicidade dos pobres.
![Foliões no Boi Tolo com fantasia inspirada no jogo do bicho — Foto: Rafaela Gama](https://s2-oglobo.glbimg.com/Smf48bTjW-SYcLlTg_pwmDYcEn0=/0x0:952x678/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/0/h/QLd7TNSNmAQ5NnWMXmAQ/jogo.do.bicho.jpg)
História do bicho, do zoológico à Sapucaí
Primórdios: Registros mostram que o jogo já era um sucesso no ano de sua criação. “Quem nunca jogou nos bichos…./ Experimente e verá?/ Que se ganha mais dinheiro,/ Do que em todo Amapá…”, diziam os versinhos de panfletos distribuídos no carnaval de 1892. A loteria foi criada pelo Barão de Drummond para promover o seu zoológico, na Zona Norte, e logo conquistou os setores mais pobres da população. Essa popularidade, diz Luiz Antonio Simas, teria assustado as autoridades, que proibiram a prática em 1895. Ainda assim, o bicho continuou fazendo parte do cotidiano da cidade, num zona cinzenta entre legalidade e ilegalidade, transformando-se numa organização criminosa.
Fachada: O bicho deixaria de ser lucrativo já nos anos 1970, por conta da concorrência das loterias criadas pela ditadura militar, especialmente a esportiva. Os contraventores diversificam seus negócios e a jogatina passa a funcionar mais como fachada para outras atividades criminosas. Também estenderiam seus tentáculos em organizações esportivas e culturais, financiando clubes de futebol e escolas de samba, como afirmação de poder político. A chegada dos caça-níqueis, nos anos 1990, seria o tiro de misericórdia no bicho.
Incertezas: Durante décadas, a cúpula manteve relativa paz. Mas, após a morte de bicheiros como Maninho e Castor de Andrade (e a anunciada aposentadoria de outros, como Anísio e Piruinha), seus herdeiros (como Rogério Andrade), entraram em guerra, como mostra a série “Vale o escrito”.
— A história do bicho mostra como fomos complacentes com a ilegalidade, permitindo que os banqueiros dominassem a cidade e dividissem seus territórios e suas escolas de samba entre si — aponta o historiador Felipe Magalhães.
![Cena do Filme "Boca de Ouro", com Odete Lara e Ivan Candido — Foto: Divulgação](https://s2-oglobo.glbimg.com/VXjjXpHr7XIMR69XTDBe57mSeH4=/0x0:703x480/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/4/P/YVeaORRAWW6i1R4gciQA/41725071-1802.1963-arquivo-reproducao-jb-zs-cinema-cena-do-filme-o-boca-de-ouro-odet.jpg)
Obras para entender o jogo
Primeiros registros: Provável primeiro trabalho memorialístico sobre o jogo do bicho foi escrito por Luiz Edmundo em um capítulo de seu clássico “O Rio de Janeiro do meu tempo”. O autor aponta que, no século XIX, a “beatífica e risonha” cidade viveu uma febre por loterias que a transformou em um “autêntico principado de Mônaco”. E conclui: “Foi preciso para que esse delírio se mostrasse, que aqui nascesse o chamado ‘jogo do bicho’”. Machado de Assis escreveu sobre um apostador no conto “Jogo do bicho”. Mas a primeira narrativa de ficção a se interessar pelo dia a dia do bicheiro é o romance “Os bicheiros”, de Eugênio Currivo Cavalcante (1940). O livro, que só teve uma edição, retrata a ascensão dos primeiros bicheiros no Rio a partir do fim do século XIX.
Estudos: O livro “Ganhou, Leva!: O Jogo do Bicho no Rio de Janeiro (1890-1960)” mostra como a prática sempre oscilou entre escândalo e folclore, associando malandros e empresários.
Jornalismo: Em “Os porões da contravenção”, Aloy Jupiara e Chico Otavio destrincham a histórica sociedade entre o jogo do bicho e a ditadura militar, em uma história de corrupção e violência.
Icônicos: A peça “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues, tem como protagonista um respeitado bicheiro de Madureira nos anos 1960. As novelas “Bandeira 2” (1972) e “Mandala” (1985), da TV Globo, também trouxeram personagens bicheiros (Tucão e Tony Cerrado, respectivamente) para dentro dos lares de todo o país.
Documentários e ficções: A série documental “Vale o escrito” investiga as origens e os dilemas do bicho no Rio. Foi a série original mais vista da plataforma na semana do lançamento. Na onda do sucesso, a Netflix deve produzir uma série de ficção tendo o jogo do bicho e o carnaval do Rio como pano de fundo.