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GERADO EM: 06/07/2024 - 03:30

Crítica de Golpe de misericórdia

A crítica de Golpe de misericórdia destaca falhas como thriller policial, apontando problemas na estrutura narrativa e desenvolvimento dos personagens. Apesar disso, o livro diverte em alguns momentos, mas acaba se perdendo em suas próprias armadilhas, resultando em uma obra regular.

Em 1974, visando a reparar a segregação racial, um juiz determinou que as escolas de Boston com maior número de alunos negros e brancos trocassem "uma parte significativa de seu corpo estudantil". O resultado implicaria alunos negros em bairros brancos e vice-versa. No calor arrasador do verão, formou-se uma onda de rejeição à medida. Milhares de pais e mães não queriam que seus filhos brancos se misturassem. Uma dessas mães era Mary Pat Fenessy, a protagonista de "Golpe de misericórdia", mais novo livro de Dennis Lehane.

Trabalhando como assistente de enfermagem numa clínica de repouso para idosos, ela perdeu o filho, veterano do Vietnã e morto numa overdose de heroína, e luta para criar sozinha a adolescente Jules. Ambas se opõem à dessegregação. Tudo desanda quando Jules, envolvida com a gangue local, desaparece e Auggie Williamson, um jovem negro, é morto no metrô.

Forjado como escritor da série policial “Kenzie-Gennaro” nos anos 1990, Lehane começou a criar obras independentes, que tentavam dar conta da sociedade americana de diversas épocas tendo como lastro a criminalidade que decorre da tensão social, lição valiosa aprendida com os mestres do romance noir. Seu “Sobre meninos e lobos” (2001), por exemplo, ganhou ares cult, encantou Hollywood e se tornou thriller de sucesso com direção de Clint Eastwood e duas estatuetas do Oscar.

Não soa gratuito, portanto, eleger uma mulher das classes baixas como (anti)heroína. Ao fazer Mary Pat ir atrás de todos os mafiosos do bairro irlandês onde mora para descobrir o paradeiro de Jules, Lehane se mantém alinhado com o próprio projeto literário. Sua Boston é um caldeirão segregado prestes a explodir. Essa dinâmica, contudo, já havia sido melhor explorada em sua estreia, “Um drink antes da guerra”, e no épico “Naquele dia”.

Capa de 'Golpe de misericórdia', novo livro de Dennis Lehane — Foto: Divulgação
Capa de 'Golpe de misericórdia', novo livro de Dennis Lehane — Foto: Divulgação

De um lado, a estrutura parece equivocada. As mudanças abruptas de ponto de vista são preguiçosas, meros dribles nos pontos cegos de Mary Pat, e no saldo final pouco acrescentam. De outro, no detalhe, sua afetação terna é cansativa, uma série de pequenos desvios que arrastam a modulação das cenas nos momentos cruciais — algo que jamais aconteceria, por exemplo, ao sueco Stieg Larsson, também afeito a iluminar detalhes.

Assim, há um problema generalizado que depõe contra as próprias pretensões de Lehane. A voltagem é baixa para um romance que se quer um policial ágil, com poucos elementos disparadores, chamemos assim, e as tensões derivadas do que há de crime diluem-se na psicologia de uma Mary Pat enfurecida. Não ajuda o fato de ela trabalhar com a mãe de Auggie Williamson e esse imenso potencial dramático permanecer ausente por quase todo o livro, que se apoia aqui e ali em uma série de coincidências benéficas demais a Lehane.

O romance histórico também não se resolve. Mesmo com lastro na sua produção, a questão racial e a dessegregação se assemelham a desculpa para situar uma história de vingança. Para o leitor acostumado aos acertos de "Naquele dia" ou "Um drink antes da guerra", tudo aparenta diluição.

No entanto, o livro não é um fracasso por inteiro. Quando abraça o melhor da literatura que o consagrou — seja numa perseguição, seja em diálogos sufocantes —, Lehane se sai bem. Seu talento para criar personagens lhes impõe algum senso de importância em poucas linhas. Uma pena que o policial Bobby, também veterano do Vietnã e aliado de Mary Pat, se converta numa grande muleta narrativa. Ou que o conflito final, anunciado ao longo de 300 páginas com ecos de “Dança da chuva” e em alguns momentos lembrando "Gone, baby, gone" e "Sagrado", se torne bambo.

As últimas páginas, em vez de redimir, acentuam os erros. O ritmo não se decide pelo fecho ou, o que seria melhor, a abertura de novas possibilidades. O resto da intenção estética — que tem no brasileiro "Agosto", de Rubem Fonseca, um exemplo bem-sucedido pela concisão — é apenas verborragia dispensável. O resultado é um livro regular, melhor que a média de seus pares de geração, como Michael Connelly, porém indeciso no sentido mais frágil. Até diverte, mas acaba vítima das próprias armadilhas.

* Mateus Baldi é mestre em Letras (PUC-Rio) e autora de "Formigas no paraíso" (Faria e Silva)

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