Não deu no New York Times. Na lista dos “100 melhores livros do século XXI” proposta pelo jornal americano não há um só autor lusófono. Eram elegíveis títulos publicados em inglês a partir do ano 2000, independentemente da data da primeira edição na língua original. A dinamarquesa Tove Ditlevsen, por exemplo, lançou livros autobiográficos entre os anos 1960 e 1970, mas eles só saíram em inglês em 2021, reunidos da “Trilogia de Copenhagen”. Ditlevsen entrou na lista, mas sua contemporânea Clarice Lispector, cujos contos completos apareceram na língua do NY Times em 2016, não.
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Também não houve menção José Saramago, vencedor do Nobel de Literatura em 1998, que publicou regularmente até sua morte, em 2010. Tampouco a romances brasileiros que concorreram a troféus literários estrangeiros recentemente, como “Marrom e Amarelo”, de Paulo Scott, e “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior, que disputaram o International Booker Prize, e “A palavra que resta”, de Stênio Gardel, vencedor do National Book Award.
É verdade que muitos idiomas ficaram de fora. Das 100 obras incluídas, quase 90 foram escritas em inglês (sendo que “A fantástica breve vida de Oscar Wao”, do dominicano-americano Junot Díaz, mistura o inglês e o espanhol), quatro em espanhol, três em italiano (todas de Elena Ferrante) e duas em francês. O alemão, o russo, o norueguês, o dinamarquês e o coreano foram representados com um livro cada. Ainda assim, numa época em que “Memórias póstumas de Brás Cubas” viraliza no TikTok a língua portuguesa não mereceria mais espaço?
Fontes do mercado de livros ouvidas pelo GLOBO lamentam a ausência de títulos como “Leite derramado”, de Chico Buarque, “A obscena senhora D”, de Hilda Hilst (publicado em inglês em 2012), “Cidade de Deus”, de Paulo Lins (2006), “O sol na cabeça”, de Geovani Martins, “Esse cabelo”, da portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida, “Teoria geral do esquecimento”, de José Eduardo Agualusa, e “Niketche”, da moçambicana Paulina Chiziane. Todos eles apontam que o problema não é apenas a pouca penetração da literatura traduzida no mercado anglófono, mas principalmente o caráter “provinciano” da crítica literária americana, que pouco olha além de suas fronteiras.
Apenas 3% dos livros publicados nos Estados Unidos são traduções. O índice é praticamente o mesmo no Reino Unido e fica entre 13% e 15% na França e na Alemanha, afirma a agente literária alemã Nicole Witt, que representa autores de língua portuguesa e espanhola. O português, diz ela, nunca representa mais de 1% dos livros traduzidos, não importa o país.
A jornalista, escritora e produtora cultural portuguesa Anabela Mota Ribeiro lembra que críticos americanos renomados já deram atenção à lusofonia.
— Harold Bloom escreveu sobre Eça de Queiroz, Machado de Assis, Fernando Pessoa e Saramago. E Susan Sontag escreveu um prefácio para “Brás Cubas”. Ela também visitou Saramago em Lanzarote. Diz alguma coisa sobre Saramago uma das maiores intelectuais do século XX deslocar-se até uma ilha e ir ter com autor, não? — diz Anabela.
A lista do NY Times foi elaborada a partir de indicações de “503 romancistas, escritores de não ficção, poetas críticos e outros amantes de livros”, que contaram com uma “ajudinha” da equipe do jornal. Entre os “eleitores”, estão autores como Stephen King, Karl Ove Knausgård, Claudia Rankine, Marlon James e a atriz Sarah Jessica Parker (de “Sex and the City”).
Embora o espanhol seja o idioma que mais aparece na lista depois do inglês, o jornal El País reclamou da “pouca representatividade” da língua de Cervantes. Citando o editor Juan Carlos Ortega Prado, da Penguin Random House espanhola, afirmou que o “cânone” forjado pelo NY Times é sintoma não da escassez de traduções, e sim da “falta de ideias que se opõem diretamente à concepção de cultura e às ideologias políticas que prevalecem no mundo nova-iorquino ou, mais amplamente, anglo-saxão”.
Os quatro livros em espanhol da lista são: “2666” e “Os detetives selvagens”, do chileno Roberto Bolaño, “Quando deixamos de entender o mundo”, de Benjamín Labatut (outro chileno), e “Temporada de furacões”, da mexicana Fernanda Melchor. Pedro Meira Monteiro, crítico literário e professor da Universidade de Princeton, nota que Melchor é descrita como “uma espécie de Faulkner do sul da fronteira” e que seu livro é chamado de “barroco”, uma história “terrivelmente angustiante de pobreza, paranoia e assassinato”.
— É a mesma linguagem que era usada para descrever os autores do realismo mágico latino-americano. Esse é o lugar que nos é reservado: ser o “Faulkner do sul da fronteira”, ser “barroco” — diz ele.
A agente literária Nicole Witt confirma essa percepção:
— Os editores americanos procuram romances que tenham elementos próprios do país do autor como que para “justificar” o esforço de traduzir do português. Evidentemente, o romance também precisa ter algo de universal para que a história dialogue com o público. Mas, quando só trata de temas universais, eles dizem: “Talvez eu consiga encontrar uma história similar nos EUA ou numa língua mais de fácil de traduzir — conta.
O editor inglês Stefan Tobler (que nasceu em Belém do Pará) especula que o NY Times talvez tenha escolhido privilegiar “livros recentes, novas descobertas” e, por isso, Clarice Lispector, embora elegível, tenha ficado de fora.
— Ela teria sido uma ótima escolha. Nenhum outro escritor brasileiro estourou como Clarice nos últimos anos — diz o editor da And Other Stories, que publicou “Marrom e Amarelo”, de Paulo Scott, em inglês. — Tenho fé que isso vai mudar.
Restrita, não universal
Meira Monteiro também acredita que o cenário pode mudar: a literatura lusófona que pretende discutir racismo e herança da escravidão e do colonialismo pode chamar atenção nos EUA, onde esses debates estão fervendo. Nesse cenário, autores como Itamar Vieira Junior, Paulo Scott, Geovani Martins, as portuguesas Djaimilia Pereira de Almeida e Isabela Figueiredo (autora de “Caderno de memórias coloniais”) e os luso-africanos Paulina Chiziane (Moçambique) e Ondjaki (Angola) ocupam posições privilegiadas.
— Esses autores são bem-sucedidos ao abordar questões existenciais em sociedades racistas, que tentam se haver com seu passado colonial. Esse é o espírito do tempo no chamado “centro do mundo” — diz o crítico literário. — Os lusófonos vão conseguir pegar carona nisso? É uma aposta.
Meira Monteiro também faz uma observação: talvez seja melhor não darmos tanta atenção à lista do NY Times.
— A lista se apresenta como universal, mas ela é restrita. Talvez devêssemos nos perguntar onde vem a ansiedade ao constatar nossa ausência nessa lista? É como se precisássemos da bênção deles.
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