Ricardo Domeneck constrói uma máquina do tempo. Em sua poesia, como mostra no recente “Cabeça de galinha no chão de cimento”, ele expõe certos ângulos não vistos em fotografias. Elege figuras, as torce, delineia seus contornos fortes, ama. Como quando escreve um poema para o escritor Victor Heringer (1988-2018), contemporâneo seu. Ao perdê-lo de forma precoce, o poeta percorre o vazio das ruas da Glória e do Catete, na Zona Sul do Rio, sem o brilho daquele “Gladiador da ternura”, escreve. O vazio envolve os versos na medida que a saudade o afoga, “como se houvesse morrido a última gentileza”. Evoca os gregos, evoca os eguns — que, na cultura iorubá, simbolizam a alma do ente querido.
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Domeneck evoca a figura de Medusa, a górgona grega, “cuja beleza habita nos teus olhos de observadora”, ao imperador César e sua mão firme (e erótica) que decide “se eu posso viver um dia a mais na arena em que nos digladiamos”. Neste verso, o desejo é transportado para as metamorfoses da carne, como nas guerras da história romana, em que soldados eram adeptos de um hedonismo supremo.
Em “Cabeça de galinha no chão de cimento”, o autor também rememora figuras antigas, presentes em seu imaginário, para parar o tempo: vai de encontro com amigos escritores a rusgas familiares. Mas, no livro, a deixa é para os avós analfabetos e a simplicidade do campo.
Como se abrisse uma fenda no espaço e levasse o leitor para as ruas pacatas, praças, igrejinhas e outros lugares na memória afetiva, Domeneck recorre a elementos da cultura brasileira raiz para direcionar sua poesia para o rés do chão. Evoca personagens que são paixões nacionais: a Cuca, de Monteiro Lobato, por exemplo.
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“Note se todos contam as moedas, se há poemas nas cédulas. Talvez seja ainda 1985. Procure então entre as galinhas medrosas um menino franzino (...) Diga-lhe que vai diminuir o medo. E o pavor da vacina de revólver e da verdade sobre si”.
Domeneck vai até os quintais da infância para trazer pequenos pavores: lendas e superstições, como “os cordões umbilicais enterrados e seus lobisomens”. A sabedoria popular é reverenciada.
Despir-se
Domeneck coloca em primeiro plano de sua história fragmentos da cultura do interior, o sincretismo e a mandinga. Ao voltar para seu lugar de origem, surgem dores e memórias para dimensionar o quão impactante é a descendência na vida dos homens. Abandonar o provincianismo, neste livro, é se despir. Abandonar uma parte de si. “Cabeça de galinha no chão de cimento” é, então, uma chance de retorno. Um espiar pela fresta.
Ao voltar ao lar, Domeneck ambienta um poema na mesa de um jantar de família. O incômodo invisível, os assuntos superados e esgarçados, o constrangimento de um jovem queer pode ser traduzido por “num instante de lucidez repentina, aguássemos agora, os sorvetes, as pizzas os lanches com lágrimas, esgoelando juntos na sarjeta”. Mas recorre a um lugar-comum utilizado pelos adeptos do pânico moral: “Mas o que diriam os vizinhos”.
Desde o lançamento da antologia “Mesmo o silêncio gera mal-entendidos” (Garupa), Domeneck tem voltado para imagens familiares, íntimas, paisagens da infância e juventude no oeste paulista. Nesta empreitada de percorrer os passos de ontem, mitos terrenos coexistem com titãs da literatura.
Princípios
Nascido em 1977 na cidade de Bebedouro (SP), Ricardo Domeneck vive desde o início dos anos 2000 em Berlim, onde produz, traduz e reúne seus poemas. Conhecido pelos versos envolventes, eróticos, sua poesia tem sido aclamada nos últimos anos, com a publicação de edições em alemão, espanhol e, em breve, em inglês. Durante seu percurso poético, é evidente a influência de Roberto Piva, grande nome da lírica homoerótica brasileira, por trazer questões existenciais e pulsões humanas que emergem das sombras, do íntimo do homem.
Em “Cabeça de galinha no chão de cimento”, as heranças de Domeneck não se transformam em sinas. Ele mostra uma série de identidades que, juntas, montam uma espécie de porta-retratos familiar. Entre histórias pessoais, a linguagem humana legenda cada um de seus antepassados: toda família tem sujeitos com falhas, trejeitos e brilhos.
Nesta junção de arquétipos, há também os elementos místicos que podem vir das ilhas gregas e do império romano, ou dos caminhos povoados por serpentes nos milharais da infância. No livro o poeta coloca na mesa figuras de devoção: as pop, como Caetano Veloso e Pedro Almodóvar, e os ermitões, como no poema que dedica ao escritor e ambientalista Leonardo Fróes, que trocou a capital fluminense pela paz do interior.
Matheus Lopes Quirino é jornalista
‘Cabeça de galinha no chão de cimento’
Autor: Ricardo Domeneck. Editora: 34. Páginas: 128. Preço: R$ 54. Cotação: ótimo.