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Cultura

Novo romance de Paulo Scott discute 'hierarquia cromática' brasileira

'Marrom e Amarelo' não é autobiográfico, mas inspirado no bairro de infância do autor e em sua relação com o irmão de pele retinta
O escritor gaúcho Paulo Scott, autor de "Marrom e Amarelo" (Alfaguara) Foto: Renato Parada / Divulgação
O escritor gaúcho Paulo Scott, autor de "Marrom e Amarelo" (Alfaguara) Foto: Renato Parada / Divulgação

SÃO PAULO – Quando atendeu o telefonema do GLOBO, o escritor gaúcho Paulo Scott, estava saindo da casa de seus pais, no Partenon, bairro popular de Porto Alegre, onde ele nasceu e viveu até os 22 anos e que também serve de cenário a “Marrom e Amarelo”, seu novo romance. Para escapar do barulho das ruas e conversar com mais tranquilidade com o repórter, se enfiou no Crisps Lanches e pediu uma água. Nos anos 1980, o Crisps tinha outro nome, que Scott não lembra, mas ele e seus amigos chamavam a lanchonete de “Xis do Baixinho”. O dono era boa praça e distribuía sanduíches a meninos pobres que perambulavam por ali de madrugada. Em “Marrom e Amarelo”, o Xis do Baixinho virou “Xis do Bodinho”.

“Marrom e Amarelo” é narrado por Federico (não, não é Frederico), um cientista social e militante antirracista, pesquisador da “hierarquia cromática entre peles, da pigmentocracia” brasileira. Quando um novo governo assume, Federico é convocado a participar de uma comissão idealizada para discutir soluções para o “caos que, de súbito, tinha se tornado a aplicação da política de cotas raciais para estudantes no Brasil”.

Nas universidades, aumentavam as denúncias de brancos se autodeclarando pardos, reivindicando um bisavô negro acessar a política de cotas. A resistência às cotas também crescia, assim como a exigência, por parte do movimento negro, da criação de critérios que substituíssem a autodeclaração para aferir quem tem direito à reserva de vagas. Uma das soluções aventadas pela comissão, e a apoiada pelo governo, é a criação de um software que avaliaria fotos dos candidatos e concluiria quem era suficientemente preto, pardo ou indígena para obter o benefício das cotas.

O pai e o irmão de Federico têm a pele retinta, a mãe dele dizia que eram uma família negra, mas ele têm a pele clara, passa por branco com facilidade e, desde criança, desviava dos insultos racistas dos atingiam o irmão. Por não ser nem preto nem branco o suficiente, herdou “um imenso não lugar pra gerenciar”. Scott se autodeclara “negro pardo”. Seu pai e seu irmão são mais retintos. O pai o chamava de “Amarelo” e o irmão de “Marrom”. Mas ele nunca se viu em “um não lugar” e afirma que, apesar do Partenon e dos apelidos da infância, “Marrom e amarelo” não é autobiográfico.

– Parti de um coisa que eu conheço e localizei a ação em um bairro que é o meu, mas depois a história foi acontecendo, ganhando um arco narrativo próprio, os personagens foram tomando corpo e eu fui me apaixonando por eles. A história andou sozinha – diz. – Eu também sou muitas vezes confundido com branco. Já estive em reunião do movimento negro onde me disseram que eu não sou negro porque não tenho a pele retina ou o fenótipo.

Em alguns capítulos, Federico narra a rotina tediosa da comissão em Brasília. Em outros, cenas da infância e da adolescência e um incidente ocorrido em agosto de 1984, na entrada de um clube chique de Porto Alegre. Esse incidente, que começou com insultos racistas, volta para atormentar os irmãos em 2016, quando Roberta, sobrinha de Federico, é presa por resistir à reintegração de posse de um prédio ocupado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Scott injetou boas doses de contradição no meio das discussões acaloradas que atravessam “Marrom e Amarelo”. O leitor às vezes se surpreende quando a defesa mais aguerrida do software que substitui a autodeclaração vem de uma mulher negra. Ou quando um taxista negro prefere se identificar com os estancieiros ricos que encabeçaram a Revolução Farroupilha aos soldados negros traídos por quem dizia querer livrar o Sul da opressão imperial. A contradição aparece não só para afastar discursos militantes que às vezes prejudicam a literatura, mas porque o próprio autor diz não ter respostas definitivas para os dilemas de seus personagens.

“Marrom e Amarelo” não é o primeiro livro de Scott a enfrentar a “hierarquia cromática” brasileira e a identidade dos mestiços. “O habitante real”, de 2011, narra o envolvimento de um moço branco, militante de esquerda, e uma índia que vivia em um acampamento à beira da estrada.

Capa do livro "Marrom e Amarelo", do escritor gaúcho Paulo Scott Foto: Reprodução
Capa do livro "Marrom e Amarelo", do escritor gaúcho Paulo Scott Foto: Reprodução

– A busca da identidade é eixo central dos meus trabalhos. Era meio inconsciente. Um dia, conversando com a (escritora) Maria Valéria Rezende, eu disse meus livros eram todos diferentes, e ela me disse que eram todos iguais, todos giravam em torno da identidade – disse Scott, que, além do sobrenome inglês, tem sangue negro, indígena e espanhol. – A questão racial brasileira é estrutural e enfrentada por escritores negros que não têm espaço nas grandes editoras. Mas isso está mudando porque você uma Chimamanda Ngozi Adichie (escritora nigeriana) quebrando tudo e meninas negras de 20 anos com discursos muito articulados arrebentando no YouTube.

Scott está de malas prontas para Xangai, na China, onde vai passar dois meses em uma residência literária. Lá, ele vai trabalhar em “Rondonópolis”, um romance policial que se passa no Centro-Oeste, para onde muitos gaúchos partiram décadas atrás na esperança de enriquecer com a expansão da fronteira agrícola. Um dos protagonistas será uma jornalista negra.

“Marrom e Amarelo”
Autor: Paulo Scott
Editora: Alfaguara
Páginas: 160
Preço: R$ 49,90