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Cultura Martha Batalha

‘Nuas na rua sob o efeito da maconha’

Acho que leio jornais antigos para tentar responder ao dilema: quando é que o Brasil começou a dar errado, ou será que nunca deu certo?

Nelson Rodrigues costumava esperar os repórteres policiais da Última Hora voltarem da rua para a redação, em busca de material para a coluna “A vida como ela é”. Vamos tomar um cafezinho, ele convidava, enlaçando o sujeito pelos ombros.

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Esses repórteres, que nos anos 1950 começavam a se profissionalizar, traziam relatos frescos de uma cidade favorecida por surtos de crescimento, mas condenada por uma mentalidade conservadora e moralista. Jovens violentadas e desaparecidas, esposas e amantes assassinadas, suicídios por honra e desespero. Casos escabrosos que rendiam as crônicas de Nelson e manchetes vendáveis, na foto o corpo estendido no chão, no topo da página um escaldou, decepou, esquartejou.

— Povo gosta de tomar partido. Todo mundo gosta de ser contra ou a favor, ele disse, setenta anos antes de Zuckerberg.

No rastro de Nelson, tomei gosto pela leitura de jornais cariocas populares dos anos 1960 e 1950, e pela conversa com repórteres atuantes naqueles tempos, como Luarlindo Ernesto e Pinheiro Junior (autor do excelente “Última Hora: como ela era”, do qual faz parte essa história sobre Nelson).

Algumas notícias contêm enredos trágicos ou tragicômicos: “Pato denunciou o ladrão”, “Matei meu marido e não tenho arrependimento”, “Nuas na rua sob o efeito da maconha” (atiravam nos passageiros do bonde as roupas íntimas), “Violentada pelo médico” (pela maneira estranha com que ele a apalpava, a menor desconfiou, e teve logo seus pressentimentos confirmados). “Débil mental foge de presídio e vai parar no prostíbulo” (disputou com uma colega de infortúnio o amor de um cafetão, e teve o rosto desfigurado por um corte de navalha).

Outras manchetes incomodam pelo frescor: “Negro atado a poste e linchado”, “Envolvido no monopólio o filho do prefeito”, “Crime duplo na favela de Benfica”, “Arroz aumenta 12%”.

Juntas, as notícias que envelheceram e as que permanecem atuais contam uma história maior: a de uma cidade que sacrificou integrantes como um efeito colateral do falso moralismo (os feminicídios de hoje, os crimes de paixão e de honra do passado), e que, ao ser contemplada com os benefícios do crescimento urbano, ignorou a população vulnerável, que se arranja desde o tempo da colônia em mocambos, cortiços, favelas, subúrbios. É esse excesso de gente desamparada, movida por desespero, miséria e ignorância, que alimenta os enredos dos jornais populares. Sensacionalistas, sim, mas também verdadeiros.

Lendo os jornais antigos, eu vejo rupturas e avanços. Vejo também causa e consequência, a continuidade de algo endêmico e muito ruim. Acho que leio para tentar responder ao dilema: quando é que o Brasil começou a dar errado, ou será que nunca deu certo? Não sei dizer, mas estou com Clarice Lispector, autora de forte crônica sobre violência urbana, a respeito do fuzilamento ladrão Mineirinho (o primeiro tiro, ela escreve, traz o alívio da segurança, o décimo terceiro tiro a enche de horror). Clarice diz que para manter a casa em pé ela se faz de sonsa diante da tragédia. “Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.” Mas ela não quer a casa, conclui no fim. Clarice quer o terreno.