Cultura

O canto como chão e como céu de Alice Caymmi

Novo álbum da cantora, 'Electra', imprime originalidade sem ecletismos gratuitos
Alice Caymmi Foto: Divulgação
Alice Caymmi Foto: Divulgação

Alice Caymmi abre “Electra” com a afirmação da força do canto — e de sua verdade essencial — sobre todas as condições, nos versos de Candeia. “De qualquer maneira, meu amor, eu canto” (ou “de qualquer maneira meu amor, eu canto”, o amor como objeto e não como vocativo). Ao longo das 10 faixas do disco, ela sublinha essa afirmação, sua voz vestida apenas pelo piano de Itamar Assiere, em canções garimpadas a partir da intensidade definitiva dos versos e melodias. Seja numa Amália Rodrigues de 1966 (“O medo mora comigo/ Mas só o medo, mas só o medo”) ou num Letuce de 2014 (“Tudo o que é perfeito/ Dá defeito cedo ou tarde”); numa Maysa de 1958 (“Pouco importa a razão da verdade/ Que impede a felicidade/ De morar no meu coração”) ou num Tom Zé de 1976, em parceira com Elton Medeiros (“Cada beijo irresponsável/ Cada marca do ciúme/ Cada noite de perdão”).

O piano suaviza — a despeito do vigor rítmico em faixas como “Diplomacia”, “Aperta outro”, “Me deixe mudo” e “Pedra falsa” — essa intensidade das canções, num movimento oposto à voz que escava fundo cada uma delas, abrindo-lhes sentidos poéticos, políticos, existenciais e “resistenciais”.

Vocação inaugural

Exposta crua no diálogo com Assiere, a interpretação de Alice ganha novas camadas — numa caminhada por ampliação de limites que ela empreende desde o início de sua carreira, do pop ao experimental, da MPB clássica ao brega. Com seu canto dosando técnica e emoção, no domínio do terreno voz e piano, a tentação de aplicar termos como “maturidade” a “Electra” é grande. Mas o termo se mostra, no contexto de sua trajetória, algo inapropriado — em momentos anteriores da carreira, Alice já esteve além e aquém. Neste álbum, ela segue na vocação inaugural que afirma a cada trabalho. Desta vez, exercitando-se em gêneros mais marcados — fado, samba, soul, toada.

A escolha do repertório (enxuto) consegue imprimir originalidade sem ecletismos gratuitos, com muitos pontos altos — como “Fracassos” (Fagner) e “Areia fina” (Lucas Vasconcellos). Talvez o único momento de menor brilho seja “Pelo amor de Deus” (Tim Maia), que soa pálida frente à sua potência como canção.

“Electra” é um disco que tem o canto como chão (humano) e como céu (arquetípico). A dinâmica dos mitos, enfim, como Electra e o embate entre sua paixão pelo pai e seu ódio pela mãe — sua relação com a origem transmutada em música na voz da Caymmi caçula.