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Cultura

'O embate ideológico virou o eixo central da cultura', critica ex-presidente da Biblioteca Nacional

Helena Severo foi exonerada nesta segunda para ser substituída pelo professor Rafael Nogueira
Helena Severo foi exonerada da presidência da Biblioteca Nacional Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo
Helena Severo foi exonerada da presidência da Biblioteca Nacional Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

RIO — "Não sei quem é, não sei de quem se trata",  diz Helena Severo , exonerada ontem da presidência da Biblioteca Nacional, para ser substituída pelo professor Rafael Nogueira . Servidora da Biblioteca há mais de 20 anos e desde 2016 sua presidente,  Severo faz questão de lembrar que nomes com diferentes posições intelectuais e ideológicas já chefiaram a bicentenária fundação. Entre eles: Plínio Doyle, Affonso Romano de Sant'Anna e Muniz Sodré — "pessoas que têm uma obra, uma tradição, uma história".

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Escolhido pelo secretário Especial de Cultura, Roberto Alvim , o nome de Nogueira já era conhecido desde sexta-feira passada. Ao saber, pelo GLOBO, da escolha, Severo divulgou uma carta colocando seu cargo à disposição e lamentando a forma como a troca foi conduzida. Para ela, a indicação aponta a disposição da nova gestão pelo "embate ideológico como eixo central de sua atuação".

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Seguidor do ideólogo Olavo de Carvalho, Nogueira se apresenta como professor de filosofia, história, teoria política e literatura. Em outubro, ele deu palestra na Cúpula Conservadora das Américas (CPAC), versão brasileira de um dos maiores eventos conservadores do mundo, liderada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

Como a senhora recebeu a notícia da exoneração?

Como eu disse na carta, acho que a forma não foi a melhor. Houve um desrespeito a mim, à equipe que trabalha comigo e sobretudo à Biblioteca Nacional, que é uma instituição bicentenária, talvez a instituição cultural mais representativa do Brasil. É a grande instituição de memória do país.

O que achou da nomeação de  Rafael Nogueira?

Olha, eu não acho nada pois eu não o conheço. Não sei quem é, não sei de quem se trata. Agora, quando o Bolsonaro ganhou a eleição e houve a transição do governo, eu e a minha equipe mais próxima discutimos a questão da permanência ou não. Nós optamos por ficar porque acreditávamos que a Biblioteca Nacional era uma instituição de Estado. O governo Bolsonaro assumiu dizendo que trabalharia com dois eixos: primeiro de combate à corrupção, e segundo de profissionalização da gestão pública. Ele afirmava que estava libertando o Brasil de uma prática centenária da política do troca-troca, do toma-lá-da-cá, e que a gestão pública seria baseada em critérios meritocráticos. Já passaram pela direção da instituição Plínio Doyle, José Honório Rodrigues, Eduardo Portella, Affonso Romano de Sant'Anna, Muniz Sodré, Renato Lessa... Ou seja, diferentes matrizes intelectuais e ideológicas e pessoas que têm uma obra, uma tradição, uma história. Esse eixo sempre se manteve, durantes todos os governos, fossem  militares ou civis. É algo que sempre foi preservado.

Helena Severo ficou sabendo da exoneração pela imprensa: 'Desrespeito' Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
Helena Severo ficou sabendo da exoneração pela imprensa: 'Desrespeito' Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

E a senhora acha que isso foi rompido agora?

O que eu vejo hoje é que, na verdade, esse novo grupo que assumiu a gestão cultural tem o embate ideológico como eixo central de sua atuação. A questão para eles é trabalhar no viés ideológico que nem é conservador, é mais do que conservador.

É o quê?

Uma coisa é pensamento de direita, outra coisa é o pensamento que vai além da direita, que é um pensamento reacionário, antigo. Olha, acho que umas das grandes questões do Brasil é que a direita, a chamada direita — e acho que nem cabe mais essa classificação —, nunca se organizou como tal. Nunca teve um discurso coerente, próprio. A minha impressão é que a direita no Brasil sempre foi envergonhada.

A senhora então acha que essas trocas estão privilegiando o embate ideológico acima de critérios de eficiência administrativa?

É, isso tudo. Agora, eu deixei claro na carta que qualquer governo tem o legítimo poder de trocar cargos de confiança. Isso não se coloca em dúvida, e democracia representativa é isso. Você elege alguém para esse alguém formar a sua equipe. Agora, eu acho que o modus operandi é incompatível. Mas eu estou bem, não saio ressentida. Acho que a sociedade brasileira tem que começar a se posicionar, dizer o que pensa.

Quais são os desafios da nova gestão? Teme por algum projeto que estava em curso?

Não tenho uma visão catastrófica dessas coisas não. Eu acho que a pessoa que assumir vai ter que entender isso. Não sei. Agora... como a questão do embate ideológico é de frente, acho que isso vai passar por um filtro talvez.

Que tipo de filtro?

O que pesquisar por exemplo, o que apoiar, talvez. Mas isso é suposição minha, de repente não acontece nada disso. Eu acho que a margem de manobra é muito pequena para isso. Há bolsas de pesquisa, mas trata-se de uma instituição de tal modo sedimentada que na verdade vejo a margem pra isso acontecer como pequena.

Como estão os projetos para a conservação do prédio da Biblioteca Nacional?

Essa é a minha grande preocupação. Quando cheguei lá eu fiz a reforma das fachadas, que estavam envoltas de tapumes há mais de sete anos. E, agora, nós conseguimos um recurso bem substancial ( R$ 22 milhões )  do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDDD), do Ministério da Justiça. Com isso, na semana passada homologuei sete licitações. São obras complexas. Por exemplo, a instalação de um moderno sistema de combate a incêndios na Biblioteca, que foi objeto de uma negociação de dois anos com o Corpo de Bombeiros e o Iphan. Finalmente nós chegamos a um acordo de um projeto e conseguimos homologar a licitação. Há ainda a licitação pra iniciar a recuperação do prédio anexo da Fundação ( na região portuária do Rio ). Nas últimas chuvas chegou a entrar água e molhar parte do acervo que estava no quarto andar. Esse anexo é vital, pois o prédio da ( Avenida ) Rio Branco não tem mais espaço para armazenar itens do acervo.

Como já foi homologado, isso vai ocorrer mesmo com a mudança de gestão, certo?

Vai ocorrer, a questão é como, né... Isso exige uma expertise. Nós formamos equipes técnicas e está tudo lá. Sinceramente, eu espero que o novo gestor se inteire disso tudo e possa tocar. Agora, são questões bem complexas, bem difíceis. Envolvem segurança do prédio, uma série de coisas. E a própria gestão de obra, que é difícil no Brasil.  Minha única preocupação é com o corpo técnico da casa. Todas as pessoas que escolhi para trabalharem comigo na diretoria são servidores de carreira, com 30, 40 anos de casa. Pessoas que são a memória da Fundação.