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Cultura

'O incêndio que mais me preocupa é da política ambiental e das instituições', diz Mia Couto

Escritor moçambicano prepara livro sobre Beira, a cidade onde cresceu, destruída por um ciclone em março
O escritor moçambicano Mia Couto Foto: Renato Parada / Divulgação
O escritor moçambicano Mia Couto Foto: Renato Parada / Divulgação

SÃO PAULO – Mia Couto estava a caminho de Beira, a cidade moçambicana onde nasceu, quando o avião foi desviado para fugir do ciclone Idai, que atingiu a região em março. Beira foi devastada. Escrevendo um livro sobre os mitos que a elite colonial espalhava às vésperas da independência de Moçambique, em 1975, Couto voltava à caça de lembranças – entre elas, um ciclone que destruiu Beira na sua infância.

Couto revisitou a história moçambicana na trilogia “As areias no imperador”, editada por aqui entre 2015 e 2018 pela Companhia das Letras. Recentemente, ele publicou “O terrorista elegante e outras histórias” (Tusquets), que reúne três peças teatrais transformadas em contos escritas a quatro mãos com o escritor angolano e colunista do GLOBO José Eduardo Agualusa.

No Brasil até o começo de outubro, Couto participa do programa educativo “Escola, Museu e Território”, realizado pelo Museu da Língua Portuguesa e pelo Programa Prazer em Ler, do Itaú Social. Nesta sexta-feira (20), ele conversa com estudantes e educadores na ETEC Santa Ifigênia, em São Paulo.

Ao GLOBO, Couto elogiou as perguntas que costuma receber de estudantes e afirmou estar preocupado com o “incêndio” da política ambiental e das instituições brasileiras.

Como você e Agualusa enveredaram pelo teatro?

Fomos aliciados por um grupo de teatro. Respondemos que não éramos dramaturgos, mas eles disseram que queriam mesmo gente não ligada ao teatro, para houvesse um estranhamento. O primeiro texto que fizemos, “Chovem tiros na Rua do Matadouro” resultou bem. Não pelo texto em si, mas pela forma inovadora como o grupo se apropriou dele. Depois veio outro convite, e mais outro, e mais outro.

Como foi escrever a quatro mãos? Deu para conciliar os estilos? O seu texto é mais poético; o de Agualusa, mais irônico.

O primeiro texto, nós escrevemos mandando e-mails um para o outro de diferentes lugares do mundo. Os outros dois, nós nos isolamos em Moçambique para escrever, o que foi mais produtivo e resultou em textos mais densos. No fim, não sabíamos mais quem tinha escrito o quê. Em debates com os atores depois de apresentações da peça, nós até disputávamos. Eu dizia que tinha que tinha escrito tal parte do texto – e ele dizia que quem tinha escrito era ele.

Você costuma ir a escolas conversar com adolescentes sobre seus livros. Como é essa experiência?

Eu aprendo muito. Os jovens nunca se apresentar como intelectuais e fazem perguntas muito diretas e cruas. Perguntas extraordinárias. Já me perguntaram se eu vou à procura dos meus livros nas livrarias. Se o fato de eu ser conhecido em Moçambique influencia minha relação com minha mulher e meus filhos. São perguntas que vão muito além da literatura.

Na trilogia histórica “As areias do imperador”, você ficcionaliza as disputas entre os colonizadores portugueses e o imperador africano Ngungunyane. Como a literatura ajuda a entender melhor a história??

O passado que me fascina é o passado que ainda está presente, que não passou. Interessa-me falar dos conflitos de séculos passados que estão ainda por se resolver: os conflitos de gênero, de raça, de poder. Também me fascina a nossa capacidade de esquecer. Em Moçambique, o esquecimento coletivo foi muito manipulado para se forjar uma nação. Nessa trilogia, quis mostrar as mentiras que foram usadas para construir a ideia de nação. A história oficial, ensinadas nas escolas em Moçambique e em Portugal, é tão ficção quanto os livros que eu escrevo.

Em março, Moçambique foi atingido por um ciclone, que destruiu Beira, a cidade onde você cresceu. Você está escrevendo um romance que se passa em Beira, não?

Sim. Já escrevi dois terços desse romance, que é inspirado na minha infância e adolescência em Beira. Na semana do ciclone, eu ia visitar a cidade para ter mais presentes as lembranças, mas o avião foi desviado para o norte de Moçambique. Quando eu cheguei a Beira, queria dar um abraço solidário nos amigos, mas eles é que acabaram me consolando. A igreja que ficava junto da minha casa foi destruída. Nós não íamos à igreja, mas parte da história do livro se passa ali. No romance também estariam lembranças de um ciclone que atingiu a cidade quando eu era menino, mas agora eu hesito.

Por quê?

Em respeito aos mortos, me parece que não tenho o direito de incluir o ciclone na história. (Houve cerca de 750 vítimas fatais do ciclone Idai.) Sobretudo, porque alguns me falaram que ia parecer estratégia de marketing, o que me deixou horrorizado. Preciso curar essa ferida como cidadão antes de escrever sobre ela.

O que você pode contar sobre o livro que está escrevendo?

Esse livro parte de vivências minhas, da minha família e de vizinhos, mas não pretende ser fiel aos fatos. Entre 1971 e 1973, mais ou menos, a cidade enlouqueceu quando a elite colonial percebeu que a guerra de independência, que pensavam estar longe, lá no norte, estava às portas da cidade. Eles começaram a delirar, a imaginar coisas fantásticas, que impressionaram muito o adolescente de 15, 16 anos que eu era. Os delírios nasciam do medo e de uma culpa de séculos. Diziam que os revolucionários já estavam na cidade e que dormiam na copa das árvores. Que havia chegado um navio de Estocolmo com suecos que apoiavam a independência de Moçambique. Mas nós nem sabíamos como era um sueco (risos) !

Você também é biólogo e consultor ambiental. Como você se sentiu ao ver a Amazônia em chamas?

Doeu muito. Eu sei que queimadas na Amazônia são recorrentes e que seria má fé culpar o governo atual por tudo. Mas eu percebo que há um outro incêndio no Brasil, um incêndio que alastra desrespeito à natureza e destrói a política ambiental e as instituições. Esse incêndio é o que mais me preocupa, porque ele não tem paralelo com o passado.