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Cultura Arnaldo Bloch

O jogador de xadrez

No tabuleiro físico ou mental de Stefan Zweig encerram-se todos os matizes da natureza esquizofrênica do indivíduo

Na linda e clássica edição de bolso francesa da Stock, releio “O jogador de xadrez”, o curto romance que o escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942) escreveu em Petrópolis, último refúgio de seus tempos de exílio no Brasil. Na descrição do prefaciador Roger-Louis Junod, Zweig “tranca numa gaveta esta última obra-prima, termina sua autobiografia e se suicida”.

A morte de Zweig e de sua mulher, Lotte, com uma overdose de barbitúricos na região serrana, era ato de desespero não só diante da perspectiva de o nazismo prevalecer na Europa, mas da decadência dos valores humanistas pelos quais ele e seus contemporâneos se bateram.

A Europa se livraria do jugo de Hitler nos anos seguintes, mas Zweig não quis esperar. Talvez pelo mesmo motivo pelo qual o italiano Primo Levi, autor de “É isto um homem?”, mesmo depois de ver o sol raiar outra vez com a vitória dos Aliados, e tendo sobrevivido a Auschwitz, também tirou a própria vida apesar de já habitar o chamado mundo livre.

É o que está nas entrelinhas de “O jogador de xadrez”, em que o jogo tão cultuado aparece, em essência e em síntese, como um embate estúpido entre máquinas mentais obsessivas lutando no vazio pela aniquilação do outro, ou de si próprio. No tabuleiro físico ou mental de Stefan Zweig encerram-se todos os matizes da natureza esquizofrênica do indivíduo.

Mais do que ter perdido a esperança numa virada de jogo na Europa e no mundo, Zweig talvez tenha enxergado que, ainda que os Aliados viessem a vencer, a liberdade, o saber, a concórdia, jamais estariam a salvo. A efetividade de bandeiras como o internacionalismo e a ideia da Europa como foco de uma união planetária em que a cultura fosse o motor dos povos morreriam junto com toda a herança do Iluminismo e do Renascimento.

Amante dos valores germânicos, patriota até a última gota, o judeu austríaco, traído, teve que se exilar, primeiro na Inglaterra, depois nos EUA e enfim no Brasil. Aqui, transacionou com a resistência do governo Vargas à sua chegada. Alinhado com o Eixo e enamorado de Hitler, Vargas usou Zweig para fazer propaganda, resultando no belo, mas ilusório, e cada vez mais equivocado, “Brasil, o país do futuro”, que virou alcunha, quase apelido nacional.

Em “Morte no paraíso”, Alberto Dines, que dedicou metade de seus dias ao estudo da vida e da obra do escritor e que o conheceu ainda menino, numa visita de Zweig ao colégio em que estudava, conta em detalhes e com maestria romanesca os tempos do escritor no Brasil. Narra também a maneira como foi guiado para se manter longe dos círculos progressistas, numa época em que intelectuais eram trancafiados. Isolado, acabou com a própria vida.

Se olhasse o Brasil de hoje e o mundo onde o nacional-populismo de direita arrasta as massas para o passado e faz lembrar o pesadelo que o afligiu, Zweig teria a dimensão exata de quão profético ele foi. Não com sua obra que previa o Brasil na vanguarda, mas ao não acreditar que o mundo pudesse se recuperar. Constataria que, de fato, a Humanidade pode estar condenada a perder-se, de novo, dentro do tabuleiro perverso do xadrez civilizacional.