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Cultura Ana Paula Lisboa

O meu olho mais azul

Toni Morrison não é a primeira mulher negra a ganhar um Nobel de Literatura, ela é a ÚNICA! Entendem a diferença que isso faz numa manchete?

Sou uma péssima leitora, ou uma leitora péssima, como queiram dizer. Apesar da ânsia pelos livros, de comprá-los como quem encontra água no deserto, sou péssima pra realizar a missão para a qual nasceram, serem lidos.

Eu demoro.

Posso ficar a ler um livro de poucas páginas por meses. Estou, por exemplo, há três anos lendo “Americanah”, de Chimamanda Ngozi Adichie. Às vezes os livros furam a fila, eu me perco de saber quem estava à frente e acabo atendendo ao que grita mais alto.

Tudo isso para contar que nunca li Toni Morrison. É uma vergonha. Mais vergonha tive na semana passada quando li a notícia de sua morte, aos 88 anos. Mais ainda quando vi pessoas que admiro e que me inspiram contando sobre o quanto a admiravam e foram inspirados por ela. Eu, vergonhosamente, não sabia. Sabia, sim, do nome, dos títulos dos livros, mas nada muito além do óbvio.

Mas fui saber!

O site da Companhia das Letras, editora que publica Morrison no Brasil, a descreve assim:

“Nasceu em 1931, em Ohio, nos Estados Unidos. Formada em Letras pela Howard University, estreou como romancista em 1970, com ‘O olho mais azul’. Em 1975, foi indicada para o National Book Award com ‘Sula’ (1973), e dois anos depois venceu o National Book Critics Circle com ‘Song of Solomon’ (1975). ‘Amada’ (1987) lhe valeu o prêmio Pulitzer. Foi a primeira escritora negra a receber o prêmio Nobel de Literatura, em 1993. Aposentou-se em 2006 como professora de humanidades na Universidade de Princeton”.

Mas a notícia mais importante certamente foi: A PRIMEIRA MULHER NEGRA A GANHAR UM NOBEL DE LITERATURA. Eu, como uma escritora negra, realmente deveria já ter lido Toni Morrison antes de sua morte, que vergonha! Todas as manchetes deram a notícia do seu falecimento dessa forma, o que certamente era importantíssimo lembrar, ressaltar, escrever, celebrar.

Mas, para não passar mais vergonha, fui logo procurar quem era a segunda mulher negra a ganhar o prêmio. E adivinhem? Ela não existe!

Toni Morrison não é a primeira, ela é a ÚNICA! Entendem a diferença que isso faz numa manchete?

Escrever deveria ser o meu olho mais azul, aquilo que me torna visível, mas isso nunca será possível se continuamos a ser as únicas, mesmo depois de mais de 25 anos. A Humanidade existe no coletivo, na soma, não no individual.

Toni Morrison dizia ter cuidado com as armadilhas da representatividade. Que um Nobel é nada em relação à privação de direitos básicos que as mulheres negras continuam sofrendo em todas as partes do mundo.

Prêmios, lugares de destaque, reconhecimentos, até likes, são importantíssimos para mostrar do que somos capazes, que afinal é tudo e qualquer coisa. Mas como têm repetido Conceição Evaristo — minha Morrison — “a nossa história não pode representar somente um êxito pessoal, ela tem que reverberar na coletividade”.