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Cultura

'O Mito da Beleza' completa 30 anos como referência do feminismo, apesar de negacionismo da autora

Livro da jornalista americana Naomi Wolf se tornou referência para o movimento de mulheres em 1991; três décadas depois, ela foi banida do Twitter por compartilhar notícias falsas sobre vacinas contra a Covid-19
Naomi Wolf, autora de 'O Mito da Beleza' Foto: JEENAH MOON / NYT
Naomi Wolf, autora de 'O Mito da Beleza' Foto: JEENAH MOON / NYT

Quando descreveu como a vigilância sobre os corpos das mulheres gera sofrimento e serve a propósitos econômicos e políticos no livro “O Mito da Beleza”, lançado em 1991, a jornalista americana Naomi Wolf organizou uma linha de pensamento que se manteve atual por três décadas. Embora movimentos de autoaceitação e positividade corporal ganhem cada vez mais força, a aparência feminina segue sob intenso escrutínio seja nas redes sociais ou na Olimpíada.

— “O Mito da Beleza” foi um livro paradigmático e disruptivo. Ele denuncia a regulação social dos corpos femininos através de imagens de beleza, mostrando que isso não tem nada de natural. É uma construção social e histórica a serviço de uma lógica patriarcal e capitalista — explica a psicanalista Joana Novaes, professora da Universidade Veiga de Almeira e coordenadora o Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio.

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No livro, Wolf, à época com 26 anos, descreve uma série de práticas culturais que, em sua análise, foram desenhadas para oprimir as mulheres recém-liberadas pela segunda onda do feminismo nos anos 60 e 70. Essas mulheres — brancas, de classe média e americanas — já não se importavam em responder ao ideal da dona de casa perfeita, mas sofriam a obsessão pela perfeição física, tendo como referência as imagens de beleza bombardeadas pela mídia, a moda e o cinema.

Negacionismo antivacina

Naomi Wolf, autora de 'O Mito da Beleza' Foto: JEENAH MOON / NYT
Naomi Wolf, autora de 'O Mito da Beleza' Foto: JEENAH MOON / NYT

Ao longo das últimas três décadas, a perfeição a ser almejada se transformou — antes a magreza das top models, hoje as curvas de Kim Kardashian — e os métodos vendidos para supostamente alcançá-la se sofisticaram, explica Novaes.

— Não se usa mais espartilho, mas existem inúmeras outras práticas cosmetológicas e cirúrgicas mais sofisticadas. E, ao se vender isso como prática de bem viver, os outros corpos passam a ser considerados desviantes e são colocados à margem — diz a psicanalista.

Mas ainda que o livro de Wolf siga sendo uma referência para muitas mulheres, a autora tem estado sob os holofotes não pela relevância de sua obra, mas por seu posicionamento negacionista expresso em comentários contrários ao lockdown e às vacinas. Wolf chegou a ter sua conta banida no Twitter por compartilhar notícias falsas e teorias conspiratórias.

Antes das polêmicas envolvendo a pandemia, em 2019 Wolf teve o lançamento de seu livro mais recente suspenso nos Estados Unidos após sua tese ser desmentida em um programa de rádio ao vivo. Wolf teria interpretado um termo jurídico do século XIX erroneamente, assumindo uma série de execuções de homens acusados de fazer sexo com outros homens que, na verdade, não aconteceram.

A imprecisão na apuração levantou dúvidas sobre trabalhos anteriores. Em artigo publicado no ano passado, Parul Sehgal, crítica literária do New York Times, lembrou que Wolf já teve pontos de outros livros revisados e derrubados. Em “O Mito da Beleza”, as imprecisões diziam respeito as estatísticas sobre mortes por anorexia nos EUA, posteriormente corrigidas. Procurada pela reportagem, a autora não retornou o pedido de entrevista.

Para Maria Carolina Medeiros, pesquisadora de narrativas sobre mulheres, a revelação do negacionismo de Wolf não foi uma surpresa.

— O grande mérito da obra dela é a tocar num ponto que não era tratado dessa maneira naquela época. Mas é uma forma de negacionismo você manipular dados da realidade ou trazê-los sem dizer de onde tirou.

Quando leu “O Mito da Beleza” pela primeira vez, a antropóloga Mirian Goldenberg, que assina a orelha da primeira edição brasileira (lançada em 2018 pela Rosa dos Tempos), encontrou na obra um eco do que constatava em suas pesquisas iniciadas nos anos 80.

— A minha primeira leitura me fez pensar sobre os interesses financeiros, ideológicos e culturais por trás de aprisionar as mulheres neste sofrimento em relação à própria imagem. Naquele momento, foi um livro libertador porque mostrou que o sofrimento não é individual, não é um fracasso da mulher, e que existe por trás uma máquina que o produz.

Para Novaes, a beleza segue sendo uma categoria identitária, e a sociedade atribui valor às mulheres conforme sua aparência.

— A feia é considerada menos mulher. Então eu não quero ser feia, porque não quero experimentar essa exclusão. O que fica claro é que, a despeito dos avanços na pauta feminista, a mulher ainda está presa nas próprias medidas, essa forma de dominação e controle segue funcionando — diz, ressaltando que o sofrimento é amplificado pela super exposição das redes sociais.

Nem mesmo as atletas escapam da vigilância. Ao estrear nos Jogos de Tóquio no fim do mês passado, a jogadora de vôlei de praia Rebecca Silva recebeu comentários negativos sobre seu corpo em sua conta no Instagram. Para evitar desgastes, ela optou por se afastar das redes durante a disputa.

— Foi a melhor coisa que fizemos. Depois do nosso primeiro jogo, nossa assessoria assumiu o comando das nossas redes, então a gente não teve acesso ao que estava acontecendo. Só fui saber depois — conta.

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Rebecca considera que a cobrança sobre seu corpo é maior pelo fato de ser mulher e atleta, mas acha que o debate sobre os padrões de beleza é necessário:

— A gente precisa naturalizar qualquer tipo de corpo, de raça, de altura, de crença. Isso não define ninguém e não me faz menos atleta — diz a jogadora, afirmando que o corpo supostamente perfeito pode mascar outros problemas. — As pessoas não sabem o que se passa na rotina de um atleta que tem um corpo perfeito.

É também nas redes sociais que a resistência e a subversão do mito da beleza se fortalecem. Cada vez mais, corpos diversos ganham espaço nas plataformas e, consequentemente, na mídia .

— Ao mesmo tempo em que há um bombardeiro de imagens de perfeição, nunca houve como hoje imagens de mulheres mais velhas, de cabelos brancos e com corpos diferentes. A crítica ao mito está maior,forte e organizada. As mulheres “perfeitas” não mais se reconhecem nesse lugar — diz Goldenberg.

Incomodada com o excesso de manipulação de imagens na publicidade, a fotógrafa Maria Ribeiro, 35 anos, decidiu expor a beleza dos corpos reais. Nos últimos sete anos, já fotografou mais de 300 mulheres em ensaios sem retoques; imagens e textos são compartilhados no Instagram @mariaribeiro_photo

A fotógrafa Maria Ribeiro encontrou em 'O Mito da Beleza' o embasamento teórico para o trabalho que fazia intuitivamente. 'Quero associar o signo da beleza a corpos reais' Foto: Corteria/Maria Ribeiro @2019
A fotógrafa Maria Ribeiro encontrou em 'O Mito da Beleza' o embasamento teórico para o trabalho que fazia intuitivamente. 'Quero associar o signo da beleza a corpos reais' Foto: Corteria/Maria Ribeiro @2019

Ela chegou ao livro por meio de uma imagem que trazia uma frase da autora, publicada em um grupo de Facebook que discutia o feminismo. “Uma fixação cultural na magreza feminina não é uma obsessão com a beleza feminina, mas uma obsessão com a obediência feminina. Fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres; uma população passivamente insana pode ser controlada”, dizia a publicação.

— Aquilo me impactou muito. Busquei o livro e vi que ela falava tudo o que eu queria falar. Criou uma base teórica para o meu trabalho, que até então eu fazia instintivamente — conta ela, que tem um só objetivo: — Quero bombardear as mulheres com imagens de auto-amor, diversidade e inclusão. A gente passa anos consumindo um modelo irreal de beleza e nosso subconsciente passa a associar aquelas imagens ao signo da beleza. Eu acredito que quando a gente começa a consumir conteúdo diverso, vai desprogramando essa associação — diz.

A antropóloga Mirian Goldenberg avalia que, apesar de o livro ter sido um marco, é preciso revisitá-lo de forma crítica.

— Hoje, a leitura é complexa. Com ela revelando essas posições, você questiona o que ela escreveu — diz, confessando que reler o “Mito na Beleza” não está nos seus planos. — Se eu fosse recomendar uma leitura ou releitura, diria para ler “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir.