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Cultura

'O Muro de Berlim caiu em cima de mim', diz biógrafo de Karl Marx

Aos 73, José Paulo Netto lança biografia do comunista, um sonho da adolescência: ‘Para manter minhas convicções, fui obrigado a fazer uma crítica radical da experiência socialista’
João Paulo Netto, autor de "Karl Marx: uma biografia": "Quero um socialismo que se importe não com o Produto Interno Bruto, mas com a Felicidade Social Líquida" Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
João Paulo Netto, autor de "Karl Marx: uma biografia": "Quero um socialismo que se importe não com o Produto Interno Bruto, mas com a Felicidade Social Líquida" Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

SÃO PAULO — Quando era um adolescente nacionalista em Juiz de Fora, José Paulo Netto sonhava em escrever uma biografia de Karl Marx . Antes de se atrever a contar a vida do autor de "O capital", Zé Paulo, como é conhecido, debruçou-se sobre a teoria do alemão e se arriscou a colocá-la em prática (a "práxis revolucionária" de que falam os marxistas). Militou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) e fez carreira acadêmica. É professor emérito da UFRJ e autor de mais de uma dezena de livros, como "O que é marxismo", publicado pela histórica coleção "Primeiros passos", da editora Brasiliense.

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Nesta segunda-feira, aos 73 anos, Zé Paulo realiza seu sonho adolescente e lança "Karl Marx: uma biografia" (Boitempo), a segunda de fôlego do teórico comunista escrita por um brasileiro. A primeira, "Karl Marx: uma biografia dialética", do historiador Angelo Segrillo, saiu em 2018. De sua casa no Recreio dos Bandeirantes, onde vive com a esposa e o border collie Pablo ("em homenagem a três Pablos: Picasso, Neruda e Casals"), e onde viveu também o beagle Lênin, Netto conversou por telefone com o GLOBO.

O senhor diz que esta biografia é "fruto de uma relação com a obra de Marx que começou há mais de 50 anos". Como ela surgiu?

Minha casa ficava num bairro industrial. O som da minha infância era o barulho das solas de madeira dos operários passando na rua. Estudei num colégio de metodistas americanos e passei a ter uma profunda antipatia pelos Estados Unidos. Caiu-me nas mãos uma edição em castelhano da clássica biografia de Marx, escrita por Franz Mehring. Tinha uns 13, 14 anos. Delirei que, um dia, escreveria uma biografia de Marx. Fui para a faculdade, ingressei na resistência à ditadura e no PCB, parti para o exílio até 1979. Fui colecionando biografias de Marx e sonhando, um dia, escrever a minha. Sou diabético, hipertenso e cardiopata. Quis fechar minha vida com meu projeto de adolescência. Sugeri à Boitempo um "livrinho" de cento e poucas páginas para marcar o bicentenário (maio de 2018) . Só em fevereiro deste ano terminei o "livrinho", que saiu com mais de 800 páginas.

Marx analisou o capitalismo do século XIX. O apego de parte da esquerda às análises de Marx é por vezes criticado como tentativa de forçar a realidade político-econômica de hoje numa moldura teórica ultrapassada...

Qualquer crítico com juízo na cabeça sabe que Marx trabalhou sobre a realidade do século XIX. Ele estudou os mecanismos moleculares do modo de produção capitalista. O "Manifesto comunista", de 1848, escrito quando ele ainda não dominava a economia política , parecia, à época, ficção científica, porque afirmava que o capitalismo transformaria todos em assalariados. No "Capital", Marx fala do capital portador de juros, que, parado, produz mais capital. A financeirização já estava em Marx. A teoria do valor-trabalho é tratada a pontapés por certos economistas por não interessar aos de cima. Por revelar a natureza exploratória da relação capital-trabalho. Exponho minhas ideias com ênfase e paixão, mas estou disposto a revisá-las, porque são verificáveis não por sua lógica interna, mas pela prática social.

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Há cada vez menos operários e a esquerda tem desafios como a inclusão das minorias e orçamentos públicos limitados. Marx ajuda nisso?

Marx tratou do problema da dívida pública. Leia "O 18 de brumário de Luís Bonaparte". É evidente que ele não deu uma solução. A esquerda tem que fazer uma análise radical da realidade socioeconômica e, a partir dela, construir projetos viáveis. Sem uma análise de classe, toda política é eleitoreira e não podemos, de fato, intervir nas lutas políticas decisivas. Marx nos dá instrumentos fundamentais, mas não suficientes. Também temos que considerar elementos culturais, étnico-raciais e demandas de categorias sociais.

Antes, o marxismo era quase hegemônico nas universidades e os comunistas tinham influência política. Depois, o socialismo real acabou e o marxismo caiu em descrédito. Isso tudo abalou a relação de vocês?

Eu mudei muito. O meu QI, quociente de ignorância, diminuiu. Você não tem ideia do impacto da Revolução Cubana (1959) na minha juventude. Quando entrei no PCB, achava que não nunca ia precisar comprar uma casa, porque o socialismo venceria e eu teria uma casa. Só comprei uma casa aos 50 anos. O muro que caiu em 89 também caiu em cima de mim. Vi Bóris Yeltsin, aquele ébrio contumaz, hastear a bandeira dos Románov no lugar da bandeira vermelha. Para manter minhas convicções, fui obrigado a fazer uma crítica radical da experiência socialista. Sofri muito, mas concluí que a revolução, como ultrapassagem da sociedade capitalista, é inadiável. Os homens vão superar esses tempos de exploração, opressão e alienação.

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A sua biografia se debruça sobre a vida e o pensamento de Marx, o tempo histórico em que ele viveu e sua amizade com Engels. Engels era mesmo só o “segundo violino”?

Uma das filhas de Marx fez um "livro de confissão", um cadernos de perguntas para as visitas responderem. À pergunta "Qual a sua ideia de felicidade?", Marx respondeu: "A luta" Engels respondeu: "( um vinho ) Château Margaux 1848." Marx era um chato! Se me perguntassem com quem quero passar um fim de semana conversando, responderia: para me ilustrar, Marx; para me ilustrar e me divertir, Engels. Tornei-me comunista não para abolir as coisas boas da vida, mas para universalizá-las. Quero um socialismo que se importe não com o Produto Interno Bruto, mas com a Felicidade Social Líquida.

Capa do livro "Karl Marx: uma biografia", de José Paulo Netto (Boitempo) Foto: Reprodução / Divulgação
Capa do livro "Karl Marx: uma biografia", de José Paulo Netto (Boitempo) Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“Karl Marx: uma biografia”

Autor: José Paulo Netto. Editora: Boitempo. Páginas: 816. Preço: R$ 95.