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Cultura Geovani Martins

‘O oráculo da noite’ e os sonhos da quarentena

Esta talvez seja a última chance de a espécie se repensar, tentar algo novo antes de nos depararmos com a tragédia anunciada do aquecimento global

Quem acompanha meus textos nesta coluna, certamente percebeu que há algumas semanas venho relatando (e inventando) sonhos. A predileção pelo tema acredito estar no fato de que o sonho é um ambiente possível além das paredes impostas por uma quarentena. Muito interessado no assunto, larguei tudo que andava lendo e mergulhei de uma vez em “O oráculo da noite: A história e a ciência do sonho” , livro publicado recentemente pelo neurocientista Sidarta Ribeiro.

Pra contar a história do sonho, Sidarta precisa recontar a trajetória da Humanidade. Num momento em que tudo parece suspenso, em que o passado se torna doloroso mesmo nas boas recordações e que o futuro se limita ao cálculo das próximas semanas, sinto que ler sobre a evolução da espécie, os inúmeros conflitos e problemas enfrentados pra sair da Idade da Pedra e chegar até aqui, me trouxe um distanciamento importante na manutenção de minha saúde mental.

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No capítulo “O sonho ancestral”, há um tópico intitulado “O sonho do fim da fome”, no qual Sidarta escreve sobre um período fundamental na história humana. Ao fim da última era glacial, iniciou-se uma progressiva seleção artificial das espécies. O amansamento das feras mudou completamente a relação do ser humano com a natureza. Não demorou pra que domesticássemos alguns animais, conseguindo proteção para a casa, carne, leite, lã e força de trabalho. Alguns milênios depois, nasceria a agricultura, com isso, as primeiras cidades. O ser humano se tornava enfim criador de seu próprio mundo.

Em situações específicas, como o risco de morte ou a necessidade de tomar uma decisão importante, o sonho pode funcionar como um simulador de situações possíveis. Produto do inconsciente, o enredo onírico tem o poder de revelar importantes informações ocultas ao sonhador.

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Os sonhos mudam de acordo com a mudança do mundo. Se na Idade da Pedra era comum sonhar com a caçada de mamutes, no tempo de criação da agricultura, é provável que sonhos girassem em torno da contemplação da natureza e seus ciclos naturais, as luas e marés, o reconhecimento dos períodos de chuva e seca, frio e calor, influenciando diretamente nas decisões mais importantes.

De lá pra cá, muita coisa aconteceu. Com o acúmulo de riqueza, passar fome não tem mais nada a ver com escassez de recursos. Apesar de todos os avisos, o meio ambiente continua sendo devastado por questões econômicas. O mundo já ia muito mal antes de qualquer pandemia.

Agora, em consequência do vírus, o capitalismo predatório, até pouco tempo atrás considerado irrefreável, precisou diminuir a velocidade. Esta talvez seja a última chance de a espécie se repensar, de tentar algo novo antes de nos depararmos com a tragédia anunciada que é o aquecimento global.

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Do nano ao macro, há muito trabalho pela frente. Sem dúvida, estamos diante de um grande marco da História, um momento chave na evolução da espécie, assim como foi a invenção da agricultura. Por aqui, tento dormir oito horas por dia, sonhar com alguma possibilidade de futuro. E espero que aqueles com o poder de mudança estrutural sonhem também com um mundo mais equilibrado e justo. Até porque, se continuarmos na mesma direção, não vai sobrar nada. Nem os sonhos.