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Cultura

O que acontece quando uma Comic-Con em quarentena se afasta dos seus fãs?

Em tempos de Covid-19, a mais antiga convenção de cultura pop falhou em traduzir para a internet, tecnológica e conceitualmente, suas qualidades essenciais
Um fã vestido de Mestre Splinter, personagem do desenho animado “Tartarugas Ninja”, em meio ao público da edição de 2015 da Comic-Con International, em San Diego, na Califórnia Foto: John Francis Peters / NYT
Um fã vestido de Mestre Splinter, personagem do desenho animado “Tartarugas Ninja”, em meio ao público da edição de 2015 da Comic-Con International, em San Diego, na Califórnia Foto: John Francis Peters / NYT

NOVA YORK - Todos os anos, durante vários dias no final de julho, o San Diego Convention Center costuma ser animado por pessoas que participam da Comic-Con International. Nos últimos anos, mais de 130 mil participantes da convenção — fãs, colecionadores, artistas e aficcionados por cultura pop — lotaram a cidade para o evento. É o paraíso dos nerds: conferências, exibições exclusivas de filmes grandes estúdios como Disney e FX, experiências interativas, banquinhas com descontos e promoções e muito mais.

Mas este ano, pela primeira vez nos 50 anos de história da Comic-Con — a mais antiga convenção de cultura pop do mundo — não houve aglomeração. Em vez disso, houve conferências pré-gravadas em programas e filmes no YouTube e uma sala de exposições virtual. A Comic-Con estava on-line.

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Como boa parte do seu público estava, pelo menos em parte, associado à internet e à cultura da internet, parece uma transição óbvia, como se essa Comic-Con pudesse trazer os fãs de volta às suas raízes, por assim dizer, e oferecer a possibilidade de novas avenidas de interação na era de Covid-19. Mas o evento virtual, Comic-Con @  Home, apenas mostrou como a convenção falhou em traduzir suas qualidades mais essenciais, tecnológica e conceitualmente. Mas o evento também serviu de lição para os fãs — como, mesmo em épocas em que as indústrias e convenções de entretenimento estão ameaçadas, os fãs continuam a impulsionar a cultura.

Em outros tempos, não havia nada como uma convenção de quadrinhos. Eu amo os convenções da mesma forma que outras pessoas adoram as férias, fico ansiosa por elas durante meses. Cada uma delas é como um animal vivo, agitado e cantarolando por dias a fio, enquanto os fãs acampam em filas apenas para conseguir um lugar na conferência. O salão do show é uma multidão de corpos, muitos fantasiados, usando apêndices extras, como asas e caudas, carregando armas falsas e se aglomerando em cabines, comprando perucas e camisetas, quadrinhos e obras de arte. O ar fica úmido pela excitação do fã, uma energia tão densa que pode sobrecarregar os sentidos.

Essa convenção digital contou com centenas de conferências, desde uma com os vários elencos de "Star Trek" e outra sobre "Walking dead”, até uma que discutia a publicação e uso de quadrinhos na sala de aula. A própria Covid-19 inspirou uma série de eventos: sobre os fãs de super-heróis durante a pandemia, sobre retratos fictícios do apocalipse e um sobre os surtos de zumbis no contexto do coronavírus.

A competição de cosplay, geralmente um evento organizado com pompa, gadgets, brilho e designs intrincados, mudou-se para o Tumblr. Watch parties — exibições de séries antigas como "Space Balls" e "The Avengers" — foram veiculadas via Scener, uma extensão de navegador que cria um "cinema virtual" para que os espectadores possam assistir a um filme, todos ao mesmo tempo, e conversar ao lado, em tempo real.

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No geral, o que poderia ter sido uma experiência adaptativa e gratificante foi, em vez disso, um fac-símile frágil. O piso da feira tornou-se um mapa bidimensional da sala de exposições onde normalmente seria realizada. Quando você paira sobre uma pequena praça, o nome do estande aparece. Mas o layout não era prático ou amigável; o equivalente on-line de caminhar e navegar equivalia a clicar individualmente em centenas de retângulos minúsculos apenas para ver os fornecedores, muitos dos quais nem sequer listavam o que tinham em estoque.

As conferências pré-gravadas pareciam limpas e esterilizadas. Não havia preocupações técnicas nem momentos embaraçosos sem scripts, que sempre representam riscos em eventos de transmissão ao vivo, mas também não havia nada humano e espontâneo. Um painel de sexta-feira, "Charlize Theron: evolution of a badass" ("Charlize Theron: a evolução de uma fodona", em tradução livre), foi uma entrevista individual requintadamente polida, cheia de informações interessantes e clipes de filmes perfeitamente incorporados, mas entregue como uma peça promocional sem vida, com a estrela de "The old guard” sentada na frente de uma parede branca.

E, no entanto, de alguma forma, a palestra ainda sim apresentou-se desajeitada.

A edição de alguns dos clipes foi flagrante, com respostas coladas sem cuidado, como em alguns dos segmentos da conferência sobre universo "Star Trek", que tiveram as respostas dos atores espremidas em rápida sucessão, sem transições naturais. Os inevitáveis erros dos atores, quando lançam spoilers para as rodadas de suspiros e aplausos da multidão, foram censurados, algumas vezes bipados e outras com um flagrante sinal de spoiler estampado na tela.

Um adeus às surpresas

As conferências também mantiveram os fãs à distância. Os comentários  no YouTube foram desativados e as sessões de perguntas e respostas, geralmente cheias de participantes empolgados em cosplay fazendo perguntas sérias, foram cortadas. Pediu-se às empresas que produzissem seu próprio conteúdo; portanto, algumas perguntas eram simplesmente fornecidas antecipadamente a partir de sua base de fãs. O elemento surpresa já era.

Até a promessa de conteúdo "exclusivo" — geralmente as estreias mundiais de novos episódios, filmes e trailers — foi esvaziada pela apresentação controlada. As informações lançadas em um vídeo público do YouTube ainda podem ser consideradas exclusivas? Parte da abertura da Comic-Con para a internet e a sua acessibilidade significam a perda da exclusividade. A democratização da convenção parece positiva, pelo menos conceitualmente; a conferência "Star Trek" contava 65 mil visualizações até o momento da redação deste artigo, enquanto o maior salão do centro de convenções durante o evento tinha capacidade para apenas 6.500 pessoas.

Mas isso também sinaliza o tipo de mudança de paradigma que temos visto ultimamente. A cultura da convenção não é mais um nicho. Nas últimas décadas, em termos mais amplos, isso significou uma mudança de um foco mais voltado para os fãs e a indústria, priorizando quadrinhos e arte, para trabalhar principalmente como plataformas de publicidade para grandes franquias lucrativas de Hollywood. E a Comic-Con @ Home funcionou de forma mais eficaz como veículo de marketing controlado pela empresa.

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As watch parties, geralmente agitadas e cheia de vida — especialmente as noturnas, perto do final de um longo dia de convenções, em uma sala escura com outros fãs cansados, mas ainda animados — eram educadas e prosaicas, com algumas dezenas de pessoas fazendo breves comentários, mas principalmente nostálgicos em releção às Comic-Cons de outrora.

De fato, a nostalgia agridoce parecia ser o tema deste ano. No Twitter, os fãs pareciam assombrados pelo fantasma dos convenções do passado. Eles compartilharam fotos de si mesmos em cosplay antigos ou posando com celebridades. As imagens mostravam fãs radiantes, reunidos em grupos ou com multidões ao redor deles, quase devastadoramente próximos, ao que parece, considerando o quanto de nossas vidas são agora definidas pelo afastamento, por nossas tentativas medidas de manter os outros a pelo menos um metro e meio de distância.

Comunhão perdida

Em certo sentido, essa distância parece uma antítese de tudo que significa ser fã. Porque, no fundo, existe um sentimento irreprimível de intimidade — intimidade com um livro, filme, programa de TV ou jogo que depois é canalizado para um sentimento de intimidade e parentesco com outras pessoas que se sentem da mesma maneira. A convenção deveria reforçar essa comunhão: como alguém fantasiado de Mulher Maravilha pode se aproximar de um Super-Homem para posar para uma foto aleatória no salão do show; a maneira como dois fãs de anime se enfrentam e enfrentam um duelo de cartas Yu-Gi-Oh; ou o silêncio que cai sobre o público antes da première de um novo filme ou programa de TV muito esperado.

Por todas as maneiras pelas quais a cultura da Internet ajudou a aumentar a cultura dos fãs, com comunidades e discussões on-line, as convenções chegaram a pavimentar uma nova rota para os fãs e a tornaram mais ativa e inclusiva. E foram os fãs comprometidos da convenção que ainda conseguiram tornar o evento deste ano algo precioso, apesar das circunstâncias. Eles compartilharam fotos de si mesmos com seus crachás, vestindo-se em suas casas como se estivessem no centro de convenções. As pessoas mostravam seus sacos de dormir e barracas, que normalmente seriam montadas para a espera dos eventos mais badalados. Em vez de fazer fila em um salão de convenções, eles “fizeram fila” nos corredores de suas próprias casas.

Essas expressões não são a totalidade dos fãs, que são muito mais antigos que a cultura das convenções — voltando no tempo a encontros em lojas de quadrinhos e noites de jogos de Dungeons & Dragons. Os fãs sempre trabalharam com o que têm.

E mesmo que este verão não tenha convenções e blockbusters, o fã nunca foi o ponto em que a cultura pop se encerra. Em vez disso, os fãs adotam a cultura pop e proporcionam a ela uma vida mais longa e complexa, que é auto-sustentável, muito além da última temporada de "Game of Thrones" ou do final dos últimos "Vingadores". Embora 2020 tenha posto em pausa grande parte da cultura pop, aqueles que a amam ainda estarão aqui no próximo ano.