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Cultura

‘O que ela sussurra’: Noemi Jaffe parte de comovente história real para ressaltar poder da memória

Autora recupera Nadejda, mulher do poeta russo Óssip Mandelstam, que memorizou os poemas do marido durante anos até que os versos pudessem publicados
A escritora Noemi Jaffe em mesa da Flip 2017; agora ela lança novo livro Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo
A escritora Noemi Jaffe em mesa da Flip 2017; agora ela lança novo livro Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo

RIO - Noite após noite, enquanto trabalha na máquina de costura, Nadejda sussurra versos do marido, Óssip Mandelstam, um dos poetas mais importantes da Rússia do século XX. Ele está morto, e é somente para manter vivas as suas palavras que ela as recita. A estratégia dá certo: sem ela, a obra de Óssip teria sido enterrada junto com ele próprio, em 1938, e a literatura russa a perderia para sempre. Se os 300 poemas sobreviveram ao expurgo stalinista e pulsam até hoje, foi graças a Nadejda, que os guardou na memória (prodigiosa) por 25 anos.

Lírica e cruel, a história do casal inspirou a paulistana Noemi Jaffe a escrever “O que ela sussurra”, curto romance narrado por Nadejda em que muito se fala de amor, paixão, saudade e resistência numa época de terror político e existencial. Sem cair na chatice panfletária, Noemi retrata também um caso de mulher-genial-ofuscada-por-marido-famoso, tipo de injustiça histórica muito debatida nos últimos tempos.

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Doutora em literatura brasileira e autora de 11 livros, Noemi conta que já conhecia a obra de Óssip quando se interessou por Nadejda, há três anos. Nascido na Polônia em 1891 e criado na Rússia, na então União Soviética, ele era um poeta renomado, mas caiu em desgraça em 1933, ao divulgar um poema satirizando o tirano Joseph Stálin. Escapou de ser condenado à morte, encarou um exílio penoso ao lado de Nadejda e, no fim, foi deportado para a Sibéria, onde morreu. Ele tinha 47 anos. Ela, 39.

A companheira de Óssip esteve ao seu lado desde 1922 e assim se manteve depois de sua morte. Metaforicamente, essa paixão sem fim assegurou a sobrevivência do poeta:

— Quando Óssip morreu, todos os seus poemas foram destruídos. Qualquer pessoa que os tivesse seria perseguida pelo regime stalinista. Nadejda memorizou tudo e manteve a obra inédita durante 25 anos. Os poemas só puderam ser publicados em 1962, depois da morte do Stálin (1953) — conta Noemi, que também é crítica literária. — Fiquei fascinada com tudo o que Nadejda fez.

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Em suas pesquisas, Noemi se deparou com uma personagem gigante que poderia ter se perdido. Ela diz que não é exagero pensar no poeta como a razão de vida de Nadejda, que morreu somente em 1980, aos 81 anos, tendo visto o reconhecimento da obra de Óssip.

— Nadejda pensava que sua vida não tinha mais sentido com a morte dele, mas só permaneceu viva para continuar sussurrando os poemas do marido — assegura Noemi.

Ecos do passado

Como bom romance histórico, “O que ela sussurra” reconstrói a época e a intensa trajetória do casal, com muitos percalços e muito afeto. Mais que isso, reforça a certeza de Nadejda de que valia a pena preservar os versos de Óssip, assim como de outros escritores proscritos. É uma mensagem contra o assassinato institucional das artes.

Noemi encontrou nessa aventura temas que lhe são caros: o exílio, que norteara seu livro “Írisz: as orquídeas”, e a exclusão, mote de “O que os cegos estão sonhando”, narrativa sobre o diário de Lili Jaffe, sua mãe, escrito durante seu confinamento no campo de Auschwitz.

— Nadejda e Óssip foram exilados dentro da própria Rússia. Penso na recente ascensão da direita no mundo, com refugiados impedidos de entrar em outros países ou sendo discriminados onde chegam. Não é muito diferente aqui no Brasil, com perseguição de minorias, mulheres e negros sob um governo preconceituoso. O encontro entre a época do romance e a nossa foi inevitável. No livro, falo do totalitarismo soviético, mas todos se parecem.

Serviço

"O que ela sussurra"

Autora: Noemi Jaffe

Editora: Companhia das Letras

Preço: 49,90

Páginas: 192