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Cultura

O que é o Brasil? Três historiadores da ABL tentam responder à pergunta

Zuenir Ventura modera conversa de imortais com Alberto da Costa e Silva, Evaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho
Da esquerda para a direita, Alberto da Costa e Silva, Evaldo Cabral de Mello, Zuenir Ventura e José Murilo de Carvalho refletem sobre o Brasil na sede da ABL Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Da esquerda para a direita, Alberto da Costa e Silva, Evaldo Cabral de Mello, Zuenir Ventura e José Murilo de Carvalho refletem sobre o Brasil na sede da ABL Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

RIO — O livro “Três vezes Brasil” era o que faltava: uma introdução ao conjunto da obra de Alberto da Costa e Silva , Evaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho . Não existe historiador brasileiro que não seja tributário de um ou dos três.

Organizado justamente por duas discípulas, Heloisa M. Starling e Lilia M. Schwarcz , o livro da Bazar do Tempo (que tem lançamento na próxima quarta, 30, no Espaço Net Rio de Cinema ) apresenta o trio de inquietos pensadores, que ousa desafiar cânones e hegemonias historiográficas consagradas para responder à pergunta: o que é este nosso país?

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Membros da Academia Brasileira de Letras (ABL) , os três abrem vias de acesso ao nosso passado para compreendermos um país ambíguo que vai se modernizando sem mudar as bases da desigualdade sobre as quais se constituiu.

Mas sem esquecer o presente, para o qual não deixam de olhar, cada um a partir de um ponto de vista próprio: Alberto da Costa e Silva, 88 anos, analisando as relações entre Brasil e África ao longo dos séculos; Evaldo Cabral de Mello, 83, partindo dos engenhos de Pernambuco; e José Murilo de Carvalho, 80, acompanhando o nascimento da República.

Nesta entrevista feita na sede da ABL, no Centro do Rio, os três falam sobre o passado, o presente e o futuro do Brasil, entre pessimismo e otimismo. Como no livro, o papo entre os três começa numa pergunta e segue sem encontrar resposta única. A razão é simples: o Brasil não é um só, são muitos.

Zuenir Ventura: No total, vocês têm 100 livros procurando entender o Brasil. Concordam que é um país que poderia ter sido e não foi?

Alberto da Costa e Silva: Todos os países poderiam ter sido e não foram.

Zuenir: Mas será que um dia o Brasil será? Como é a visão de vocês do futuro?

José Murilo de Carvalho: Minha visão é muito pessimista. Haverá saída para a situação em que vivemos? Eu acho que é muito difícil com uma marginalidade tão grande, com tanta exclusão social, milhões de pessoas desempregadas, subempregadas ou não empregáveis por falta de educação. Não vejo como incorporar ao mercado com um crescimento de 1% ou 2% ao ano.

Evaldo Cabral de Mello: A ideia de que o Brasil será uma grande potência no futuro é uma ideia que a gente tem que descartar. Pelo menos nos próximos 40, 50 anos. O que o Brasil na melhor das hipóteses podia ser, e do ponto de vista do nível de vida e de escolaridade, seria um Canadá ou uma Austrália. Ou seja, um segundo escalão da sociedade internacional.

Alberto: Eu sou otimista. Vivi o Brasil desde os anos 1930 e nesse percurso, nos meus 88 anos, eu só vi o país melhorar. Apesar de todos os problemas, o Brasil de hoje é muito melhor do que o de 1940. Pelo menos aquele Brasil que eu vivi em 1940.

Evaldo: Qualquer país hoje é melhor do que era 50 anos atrás. Até a Bolívia.

Alberto: Ainda bem, não é? Acho que temos uma visão desnecessariamente pessimista. Eu não creio que o Brasil venha a ser uma grande potência, e nem creio que o país queira isso. O que nós queremos é um país melhor.

Evaldo: E há outra coisa também. Na carta geográfica do mundo não há grande potência no Hemisfério Sul. Todas as grandes potências da História estão no Hemisfério Norte. Você não tem um grande país, do ponto de vista de potência imperial, no Hemisfério Sul.

Evaldo: Disse uma coisa anos atrás que parecia piada. Que o problema fundamental do Brasil foi que não respeitamos a linha divisório do Tratado de Tordesilhas. Não dava para nossa competência administrar um país desse tamanho e dessa variedade cultural que o Brasil tem.

Alberto: Mas administramos até agora.

Evaldo: Empurramos com a barriga.

José Murilo: Mas o pior do Brasil agora está dentro das Tordesilhas. Enfim, Alberto, no seminário da ABL “Brasil 2050”, a palestra sobre meio ambiente se concentrou no Rio e previu catástrofe total. Outra sobre economia projetou com muito pessimismo os próximos dez, 20 anos. Claro que houve mudanças importantes, mas fomos acumulando uma marginalidade de milhões de pessoas. A China conseguiu tirar milhões e milhões da pobreza. Nós tiramos muitos em um momento e logo depois... A gente não tem um percurso firme e constante. A gente vai de altos e baixos.

Alberto da Costa e Silva escolheu explorar a trama complicada que interliga o Atlântico, a África e o Brasil. Ele nos faz compreender que não existe uma única África — elas são várias e se subdividem nas tantas nações, culturas, grupos e comunidades que entraram aqui de forma compulsória e por meio da escravidão Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Alberto da Costa e Silva escolheu explorar a trama complicada que interliga o Atlântico, a África e o Brasil. Ele nos faz compreender que não existe uma única África — elas são várias e se subdividem nas tantas nações, culturas, grupos e comunidades que entraram aqui de forma compulsória e por meio da escravidão Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Zuenir: Em outro ciclo da ABL, um palestrante disse que ao Brasil de hoje falta até esperança. Concordam?

Evaldo: Depende muito da classe social. O povo brasileiro não é pessimista, e isso é uma das riquezas do país. Ele é otimista. O pessimismo é um negócio da classe média para cima.

José Murilo: Os pessimistas são os que estão bem de vida (risos).

Zuenir: Vocês acham que a gente está vivendo um momento parecido com o que precedeu o golpe de 1964?

José Murilo de Carvalho: Não, não. Essas coisas não se repetem. A Guerra Fria que alterava tudo, né?

Zuenir: Agora... aquilo surpreendeu a todos. Inclusive você, né?

José Murilo: Surpreendeu a natureza do golpe. A decisão dos militares de não devolver o poder aos civis.

Alberto da Costa e Silva: Foi a grande diferença. Porque as Forças Armadas assumem e controlam o poder. Elas tinham um projeto para o Brasil criado na Escola Superior de Guerra.

Evaldo Cabral de Mello: Mudou completamente, né? Tenho a impressão de que a mentalidade dentro do Exército mudou.

José Murilo: Antes, havia divisões internas nas Forças Armadas. Hoje é uma instituição mais integrada, com maior capacidade de ser regulada politicamente.

Evaldo Cabral de Mello “ilumina o Brasil a partir de Pernambuco, seu miradouro”. Desde os anos 1970, ele vem construindo quase sem alarde uma obra sobre o Brasil colonial que as organizadoras do volume consideram indispensável. O açúcar, a dominação holandesa, os projetos republicanos transformam a Zona da Mata em local de experimento e realidade diferente do descrito por uma historiografia que, concentrada na capital, perdeu o som e o ruído da província. Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Evaldo Cabral de Mello “ilumina o Brasil a partir de Pernambuco, seu miradouro”. Desde os anos 1970, ele vem construindo quase sem alarde uma obra sobre o Brasil colonial que as organizadoras do volume consideram indispensável. O açúcar, a dominação holandesa, os projetos republicanos transformam a Zona da Mata em local de experimento e realidade diferente do descrito por uma historiografia que, concentrada na capital, perdeu o som e o ruído da província. Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Zuenir: Uma ameaça atual à democracia é a história fraudada, reformada.

Evaldo: Eu tô no Brasil colonial, não tenho nada a dizer sobre isso... (Risos.)

Alberto: Minha história é o Brasil Atlântico....

José Murilo: Eu estou no século XIX!

Zuenir: Mas se preocupam com o século XXI também, certo?

Evaldo: Não tenho nenhuma preocupação com o século XXI, eu não estarei nele. (Risos.) Eu sou de um egoísmo completo.

José Murilo: Um quinto dele você já viveu! (Risos.) Bom, hoje já não se fala mais da História como mestra da vida. A própria ideia de que a História deve descobrir a verdade caducou.

Alberto: O passado passa a ser para a gente reinventar. Cada um de nós reinventa seu passado de acordo com o que vê, o que leu, o que sentiu. Nós reinventamos o passado, é inexorável, cada geração faz isso, e cada autor dentro de uma geração faz a mesma coisa.

Zuenir: Mas há fatos que não podem ser reinventados.

Evaldo: Mas a interpretação do fato pode.

José Murilo: Getúlio se suicidou. É fato. Mas entender o que aquilo significou, esse processo, muda realmente ao longo da História. O passado é revisitado constantemente de acordo com circunstâncias.

José Murilo de Carvalho se define como uma “mistura de sociólogo e cientista político com vocação de historiador”. Ele é incansável na busca para compreender os sinais do que ocorre às avessas. Como entender o saldo negativo de um país onde as chances de modernização política são reais, mas os resultados estão sempre aquém? Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
José Murilo de Carvalho se define como uma “mistura de sociólogo e cientista político com vocação de historiador”. Ele é incansável na busca para compreender os sinais do que ocorre às avessas. Como entender o saldo negativo de um país onde as chances de modernização política são reais, mas os resultados estão sempre aquém? Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Zuenir: Há uma responsabilidade de vocês neste momento de crise, por serem referência intelectual para todo mundo?

Alberto: Somos? Seremos? Fomos? Tenho dúvida.

Evaldo: Quando você se ocupa com História, não pensa muito sobre presente. Acho um pouco de charlatanismo intelectual o camarada ser especialista no passado e querer ter ideia, no presente, sobre como as pessoas devem viver. Acho que o intelectual é um negócio que devia ser posto muito mais de lado.

José Murilo: Há um apelo constante. Volta e meia estão te ligando, os jornalistas, querendo opinião. Eu muitas vezes recuso, pelo menos uma ou duas por semana. Mas há uma pressão grande. E a gente se pergunta: falar ou não falar? A autoridade é dada a essas pessoas que falam. Não sei se é benéfico ou não para o país. Certamente é uma opinião a mais.

Alberto: Eu geralmente me irrito quando me releio.

Zuenir: Uma constatação: os historiadores estão perdendo público para os jornalistas.

Evaldo: Porque tem muito historiador escrevendo mal.

José Murilo: Os jornalistas escrevem muito melhor.

Alberto: Fazem uma tese de 200 páginas sobre a fabricação de parafusos em Atibaia entre 1850 e 1866. Quem tem interesse nisso?

Zuenir: Falta inclusive o humor, que sobra em vocês três.

Evaldo: É difícil no Brasil não ser irônico.