Cultura

O Rio resiste à morte das suas ruas nos livros de Simas e Vidal

“O corpo encantado das ruas” e “Algum lugar para cair e fechar os olhos de vez” retratam o tipo carioca em constante movimento, que se recusa a ser rotulado
Os escritores Luiz Antonio Simas (à esquerda) e Raphael Vidal se encontram no Bar Madrid, na Tijuca Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Os escritores Luiz Antonio Simas (à esquerda) e Raphael Vidal se encontram no Bar Madrid, na Tijuca Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Luiz Antonio Simas , 52 anos, e Raphael Vidal , 37, são escritores cariocas que gostam de pipa. E o assunto, como não poderia deixar de ser, vem à baila quando eles se encontram na tarde quente para conversar, no tijucano Bar Madrid, sobre seus mais novos livros — respectivamente, “O corpo encantado das ruas” (Civilização Brasileira) e “Algum lugar para cair e fechar os olhos de vez” (Pallas).

— Um garoto na Maré me falou que não precisava mais soltar pipa porque ele tem um aplicativo de pipa no celular! — relata Simas, com alguma indignação que não chega a espantar Vidal:

— Meu tio de sessenta e poucos anos, que é pipeiro de Olaria, outro dia estava soltando pipa no aplicativo. Ao mesmo tempo, se você chegar no Piranhão no fim de semana, vai ver que lá está cheio de pipa de verdade!

MITOLOGIAS: Luiz Antonio Simas traça retrato saboroso do país em 'Almanaque Brasilidades'

Os dois livros — um de “um historiador que trabalha com crônica” (como se define Simas), outro de um ficcionista — se encontram na abordagem de um Rio de Janeiro em vertigem. Uma cidade de micro-diásporas, em eterna disputa de territórios, de grande violência simbólica, na qual antigas formas de socialização, como a pipa e o saquinho de doces de São Cosme e São Damião, vão morrendo para dar lugar a outras.

— O Rio é uma cidade em transe, que hoje sofre uma inflexão violenta do neo-pentecostalismo, que opera no racismo religioso e na morte da rua. Mas ao mesmo tempo você tem reações de quem quer manter a rua viva — analisa Luiz Antonio Simas. — O processo é feito de perdas e ganhos. Vai chegar o momento em que a escassez vai gerar sabedoria. O Rio é mais pulsante onde o couro está comendo.

— O carioca é um cara que sabe gingar muito, que sabe se adaptar às situações. E ele ginga com as novas tecnologias também — acrescenta Raphael Vidal, que estreia em romance. — Isso pode ter resultados pelo bem da cidade na questão dos encontros, mas tem o paralelo negativo que é o pavor que e tecnologia pode trazer. Imagina você hoje ter uma cidade em que um aplicativo avisa onde tem tiroteio!

Detalhe da capa do livro "Algum lugar para cair e fechar os olhos de vez", de Raphael Vidal Foto: Reprodução
Detalhe da capa do livro "Algum lugar para cair e fechar os olhos de vez", de Raphael Vidal Foto: Reprodução

Uma “saga de vida e de morte”, na descrição de Vidal, “Algum lugar para cair e fechar os olhos de vez” é um livro em que o protagonista/narrador, um personagem “que não é ouvido nem visto por ninguém”, vai se acabando junto com a sua cidade.

— Ele está um passo á frente do marginalizado, é o cara que não entra em nenhuma estatística e que a gente vê crescendo a cada dia — explica o autor. — São os correrias, a galera que a gente vê vivendo do que a rua traz. É o ser bruto, aquele que a gente sabe que vive, que não tem dramas, mas que é essencial para a cidade andar.

Pessoas comuns

Coletânea de ensaios curtos, com referências que vão de João do Rio a Walter Benjamin, “O corpo encantado das ruas” (recordista de vendas de não-ficção do grupo Record na Bienal do Livro) guarda muitos pontos de contato com o livro de Vidal.

Detalhe da capa do livro "O corpo encantado das ruas", de Luiz Antonio Simas Foto: Reprodução
Detalhe da capa do livro "O corpo encantado das ruas", de Luiz Antonio Simas Foto: Reprodução

— O Rio de Janeiro de que eu falo nem é o da Zona Sul e nem o da favela. É o Rio de uma classe média baixa, suburbana. O que é muito curioso, porque criou-se um discurso dicotômico no Rio entre o morro e o asfalto, mas tem aquela gente humilde da música do Garoto com o Chico Buarque e o Vinicius, aquela turma das cadeiras nas calçadas, que é negligenciada na história da cidade — diz o tijucano Simas. — Eu gosto de pensar a historicidade das pessoas comuns, que não têm nada de espetacular do ponto de vista da hecatombe e da dor.

— Esse carioca ainda existe, ele está lá ainda. Independentemente de a guerra do tráfico estar rolando ao lado, ele continua botando a cadeirinha dele na calçada — garante Raphael Vidal, que mora no Morro da Conceição e bate ponto no balcão da sua Casa Porto, botequim cultural na Praça Mauá. — Pensar uma sociedade com divisões é o primeiro equívoco. Pensar que o cara do funk não se mistura com o cara do samba... pra essas pessoas não há divisões. Na esquina, no botequim tem todo mundo, você vai encontrar todas as possibilidades do Rio.

Natural de Campinho, com passagens por Jacarepaguá e Vista Alegre, Vidal se recorda bem da ocasião, há uns 20 anos, quando travou o primeiro contato com Simas — esse “carioca por acaso”, filho de uma balconista pernambucana com um barbeiro catarinense, que trabalhavam em Copacabana e criaram a família em Nova Iguaçu:

— Foi na macumba, né? Eu estava na faculdade de Filosofia e um amigo meu era babalaô. Num dia em que eu fui jogar Ifá eu conheci ele.

— Eu também sou babalaô, era um jogo em Vila Isabel. Aí ele foi trabalhar num colégio em que dava aula, e depois a gente foi se encontrando na rua mesmo — devolve o amigo.

Na insistência

É na festa que os dois veem uma possível volta por cima do Rio de Janeiro.

— Por mais que a cidade esteja em disputa, praticamente quase todos os dias você consegue encontrar as pessoas na rua pelo samba, na cidade inteira. As pessoas estão insistindo tanto numa cidade que nem existia, de ter um encontro na rua — comenta Vidal, que em novembro participa da Feira Literária de Paquetá e da LER - Salão Carioca do Livro, na Biblioteca Parque.

— As escolas de samba estão vivendo um momento muito interessante no Rio de Janeiro, e porque elas entraram numa crise pesada. O pior momento delas foi quando o dinheiro estava sobrando e os enredos eram de última categoria, uma perda completa de referência comunitária. Hoje está rolando um movimento de vigor no caos que há muito tempo não existia — aponta Luiz Antonio Simas, atração do Viradão Suburbano também no mês que vem, com suas aulas públicas, e em vias de lançar a sua biografia do Maracanã.

“O corpo encantado das ruas”

Autor: Luiz Antonio Simas

Editora: Civilização Brasileira

Páginas: 112

Preço: R$ 34,90

“Algum lugar para cair e fechar os olhos de vez”

Autor: Raphael Vidal

Editora: Pallas

Páginas: 72

Preço: R$ 27