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Cultura

‘O samba da Mangueira fala das maiorias, e não das minorias’, diz Manu da Cuíca, coautora de 'História para ninar gente grande'

Compositora conta por que não assinou a parceria, revela como Marielle foi incluída e fala sobre machismo nas escolas
Manu da Cuíca, unica mulher compositora e letrista do samba da Mangueira, campeã do carnaval 2019 Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo
Manu da Cuíca, unica mulher compositora e letrista do samba da Mangueira, campeã do carnaval 2019 Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo

RIO — A estrofe do samba campeão da Mangueira é feita de uma aliteração — a repetição da sílaba “ma”, presente em “Marias”, “Mahins”, “Marielles” e “Malês”. Manuela Trindade Oiticica, a Manu da Cuíca, também tem “ma” no início do nome, mas não está na letra que escreveu e já é incluída na antologia dos desfiles. Uma das responsáveis pelo título da verde-e-rosa, a escritora, compositora e percussionista torce, por essas ironias carnavalescas, pela rebaixada Imperatriz Leopoldinense. Casada com o também compositor Luiz Carlos Máximo, ligado à Portela, é mãe da pequena Havana, de 4 meses.

Ela e o marido permaneceram ocultos na assinatura do samba da Mangueira porque, na época da disputa, também concorriam pela Portela.

— Foi uma opção nossa, as escolas não tiveram a ver com isso. Depois, eu estava muito envolvida com a gravidez, tinha outras prioridades, mas, quando o samba bombou, as amigas começaram a me cobrar que eu o assinasse. Achei que não devia fugir a essa responsabilidade — diz.

Craque de futebol (jogou no Fluminense), Manu é cria do Bip Bip. Credita a Alfredinho, dono do bar, que morreu sábado de carnaval , sua formação. E relata que já enfrentou machismo nas rodas de música da cidade, na primeira disputa de samba da qual participou, na Canários das Laranjeiras, e também ao concorrer na Portela. Até 2006 a própria Mangueira proibia a presença de mulheres na bateria.

— As pessoas acham que a mulher está lá para torcer, não nos veem como autoras.

Letrista de todas as canções do último disco de Marina Iris, "Rueira", e do samba do Simpatia É Quase Amor ano passado, ela não acha que a projeção conseguida na Mangueira vá mudar sua carreira.

— Um letrista não tem sequer perfil no Spotify. Somos invisíveis.

Aos 34 anos, ela agora integra a pequena lista de compositoras das escolas, com um hino que trata do Brasil.

— O samba fala das maiorias, e não das minorias. A maioria das pessoas não é príncipe, princesa ou rainha. A maioria são os “heróis de barracões”. As pessoas se reconhecem, e se abraçam.

Você e seus parceiros tinham a ideia prévia de incluir Marielle?

Fomos atraídos pelo tema, fascinante não só para os compositores, mas pela forma de ver o mundo. Era uma sinopse necessária, de um desfile artisticamente imprescindível. Mas a Mangueira estava muitíssimo bem servida de samba-enredo nos anos anteriores, todos com 40 pontos do júri, aprovados pelos críticos e pelo público. Sabia que pra ser ouvida e considerada, precisaria chamar atenção.

A decisão mais difícil seria como abordar a sinopse e pensamos numa letra que fosse um diálogo com o Brasil. A melhor forma era fazer disso uma conversa afetiva e uma reivindicação de um país. Em oposição ao resumo em 140 caracteres, do meme, da fake news, de alguém que não vai nos debates e termina eleito.

Optamos também por fazer uma espécie de lista de presença daqueles nomes da sinopse. O objetivo não era explicar, mas instigar, com a responsabilidade de trazer os nomes, num diálogo. A embocadura seria da reivindicação de um país. Foi o ponto de partida tanto da letra quanto da melodia. Mas não é aí que entra a Marielle.

E como foi?

A estrofe veio rápido, e formava uma aliteração pela repetição dos nomes. Pensamos na ideia de trabalhar no plural, por causa dos anônimos, das pessoas que estão aí hoje. Nesse "ma, ma, ma", não tinha Marielle — só Marias, mahins, malês, marés. Quando parecia pronta, veio a ideia da Marielle, no sentido das pessoas que lutam pela sobrevivência diária, por justiça social. A Marielle está nesse enredo, como estão as Marias anônimas, a Maria Quitéria... Entendemos que o nome dela era totalmente pertinente.

"Um letrista não tem sequer perfil no Spotify. Somos invisíveis", diz Manu da Cuíca, coautora do samba campeão da Mangueira Foto: Ana Branco / Agência O Globo
"Um letrista não tem sequer perfil no Spotify. Somos invisíveis", diz Manu da Cuíca, coautora do samba campeão da Mangueira Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Se ela se chamasse Joana, talvez não entrasse...

Sim. Mas não tivemos qualquer resistência. O Leandro e a escola entenderam a dimensão política da menção, que tinha tudo a ver com a sinopse e o enredo e a grandeza de aceitar que ali era um roteiro e que a gente podia se apropriar dele, acrescentando ou suprimindo nomes.

Como foi sua participação na disputa, já que o crédito a sua autoria só veio depois?

Estava na parte final da gravidez, com outras prioridades, e meu envolvimento foi reduzido. Fui a algumas disputas, assisti e saí. Éramos azarões. Não tomava cerveja, sequer ia lá pra frente. Na reta final, estava com oito meses, maior barrigão. E não era conhecida no universo do samba-enredo. Não assinamos de início porque estávamos disputando (Manuela e o marido, Luiz Carlos Máximo) na Portela, que exige exclusividade.

Quando você se incomodou com a invisibilidade de sua participação?

Acho que foi porque o samba se fortaleceu. Eu não pude viver direito o processo, por estar no final da gravidez, depois me mudando, casando, parindo. Minha ligação afetiva com o samba era pouca, porque estava com outras coisas na cabeça. Quando a Havana fez três meses, respirei e comecei a pensar emocionalmente e politicamente nisso tudo.

É muito difícil a gente, que é mulher, ocupar alguns lugares, e não me senti no direito de invisibilizar a gente, justamente quando consegui. Vale ressaltar que não foi nenhum impedimento ou dificuldade com meus parceiros. Somente porque estava participando de outra disputa. Mas, em certas situações, não temos o direito de nos calar.

Você enfrentou esse problema também na sua vida de compositora?

Senti muito como percussionista, um lugar muito masculino nas rodas de samba, onde os homens reafirmam valores como virilidade e potência. Sempre tem dois caminhos: a tutela, do homem que apadrinhou e diz "já viu como ela toca?"; e o do exotismo, que é o que diz "nossa, uma mulher tocando isso tudo!" Como jogar futebol, meio onde eu também experimentei o machismo. Num e noutro, não dão às mulheres o direito de ser medianas.

Qual é sua escola?

Imperatriz, onde tive relação territorial mais forte. Minha mãe trabalhou muito tempo com o Fábio de Melo na comissão de frente e depois com alas coreografadas. Ia muito lá. Mas minha mãe é mangueirense.

A vitória da Mangueira, num palco que a amplifica tanto como o carnaval carioca, é também uma espécie de gol da esquerda?

O samba da Mangueira fala das maiorias, e não das minorias. A maioria das pessoas não é príncipe, princesa ou rainha. A maioria são os “heróis de barracões”. Quando isso é explicado, as pessoas se reconhecem. E, ao se reconhecerem, elas abraçam.

A gente tem poucos espaços para dizer que esse país não é feito de banqueiros, e sim de trabalhadores. As redes sociais são espaços que invertem as coisas, um lugar onde as minorias viram maiorias, porque há robôs que multiplicam essas vozes minoritárias que desejam o poder e agora infelizmente chegaram à presidência do Brasil.

Não tenho dúvidas de que moro no país em que a maioria das pessoas não acha normal rasgar uma placa que homenageia uma mulher que foi assassinada. Quero acreditar que esse é um país onde as pessoas repudiam o assassinato de mulheres, ainda que sejamos recordistas nisso.

A barbárie tem sido um projeto político vitorioso e precisamos entender a encrenca em que a gente se meteu. Mas a maioria dos brasileiros não gosta, não aposta, não quer e não vive na barbárie.

Durante o desfile da Mangueira, vi inúmeras mulheres passando por mim e mudando a letra do samba, se apropriando dos versos. Elas diziam: “Brasil, o meu nome é Dandara”. As pessoas são muito mais próximas de Dandara, de Chico da Matilde e de Marielle Franco do que da Princesa Isabel ou Duque de Caxias.

Esse é um enredo contra a Escola Sem Partido, porque o perigo desse projeto é que esse país tem uma História da qual elas não fazem parte, em que tudo foi feito de cima pra baixo.

“A gente tem poucos espaços para dizer que esse país não é feito de banqueiros, e sim de trabalhadores. As redes sociais são espaços que invertem as coisas, um lugar onde as minorias viram maiorias”

Manu da Cuíca
Compositora

Alfredinho, dono do bar Bip Bip, morreu no sábado de carnaval, foi velado com samba e na rua na segunda-feira, e está intimamente ligado à sua história como compositora.  Como você avalia o legado do Bip para pelo menos três gerações de músicos no Rio?

Toda vez que eu falar do Bip Bip eu na verdade estarei falando do Alfredo. Entre os vários méritos que ele teve, o maior foi deixar o Bip se tornar maior do que ele. No enterro, quando alguém sugeriu “Vamos tocar uma música que o Alfredo gostava”, todo mundo se olhou e não conseguiu decidir.

A gente não sabia que música era a preferida, porque, em todos esses anos de bar, ele jamais pediu pra tocar essa ou aquela. Comecei a frequentar o Bip Bip com 18 para 19 anos, estou com 34 e acabei de ser mãe. Tive a sorte de apresentar minha filha (Havana, de 4 meses) a ele.

Nesse período tão fundamental de entrada na vida adulta, eu estive no Bip Bip pelo menos uma vez por semana. Tocando, conversando, ajudando no bar. Fui com o Alfredo numa caravana inesquecível para a Rússia em 2017, para celebrar os 100 anos da Revolução Comunista.

Ele foi enterrado com a bandeira da Mangueira e tinha até diploma honorário de mangueirense num quadro em casa. O fato de a Mangueira ter desfilado no dia do funeral dele balançou as minhas convicções como ateísta. Fui para o Sambódromo com a placa “Alfredinho, a luta continua”, porque sei que o samba da Mangueira não teria existido sem ele. Fiz essa letra porque o conheci.

Pouca gente sabe que Alfredinho realizava anualmente um Natal para a população de rua de Copacabana, na calçada do Bip Bip. Ele percebeu que o dia da ceia era o pior para os mendigos. Com os restaurantes fechados, eles não tinham onde pedir os restos de comida. Como você enxerga essa conciliação entre as convicções políticas socialistas e sua prática como católico?

Entendi com o Alfredinho que existe uma dimensão religiosa que é profundamente humanitária. Quando a gente entende a religião por esse viés, e não como um desejo de poder e de exclusão, tudo faz mais sentido, inclusive a conciliação com as escolhas políticas.

Já parece claro que o capitalismo não vai efetivar a Humanidade. Quantas tragédias a gente vai precisar citar para as pessoas entenderem isso? Brumadinho, nos refugiados, nos tiroteios nos morros cariocas. Na dimensão humanitária, o socialismo pode ser muito próximo do cristianismo.

Você fez um disco inteiro com a cantora Marina Iris, que gerou um hit para as rodas de samba cariocas, "Rueira". Tem ideia dos seus próximos passos como compositora? Acha que a projeção do samba da Mangueira pode modificar sua carreira?

É difícil responder à sua pergunta, mas acho que não vai haver nenhuma mudança efetiva. Nunca consegui viver da música, mas seguirei compondo sempre, e aproveitando todas as oportunidades. Sou formada em Letras e me sustento trabalhando com comunicação.

Os compositores de samba-enredo são bastante invisíveis. Cada escola tem mais de uma hora de transmissão, e os autores do samba raramente são citados. Para o letrista que não é intérprete é ainda mais complicado. A gente não tem sequer um perfil no Spotify. Ninguém consegue pesquisar ali tudo o que eu fiz.  As rádios também não falam os autores das músicas, e elas passam a ser dos intérpretes.