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Cultura

Obra de pianista Tia Amélia é resgatada em disco de Hercules Gomes

Artista pernambucana, que comandou programa nas TVs Rio e Tupi, encantou de Getúlio Vargas a Roberto Carlos
A pianista Tia Amélia, em foto de 1959 Foto: Agência O Globo
A pianista Tia Amélia, em foto de 1959 Foto: Agência O Globo

Amélia parecia fadada ao destino de uma Eurídice Gusmão — a personagem do livro de Martha Batalha e do filme “A vida invisível” (2019), de Karim Aïnouz, é uma jovem que quer virar pianista, mas se vê obrigada a casar e “constituir família”. Na vida real, Amélia Brandão Nery (1897-1983) casou aos 17, teve três filhos na sequência e abdicou da alegria de tocar, por exigência do marido. Mas, de repente, o jogo virou. Viúva aos 25, ela se viu obrigada a viver do piano. Compôs mais de 200 músicas numa carreira tão espetacular quanto instável. Quatorze delas estão no disco recém-lançado de Hercules Gomes, capixaba radicado em São Paulo e fissurado na produção dos “pianeiros” da virada do século XIX para o XX.

A carreira de Amélia teve etapas separadas no tempo. Nos anos 1930, a pernambucana tocou para o seu ídolo Ernesto Nazareth, apresentou-se para Getúlio Vargas, fez turnê por 21 países e todos os estados brasileiros — ela ao piano e sua filha Silene cantando e dançando. O amigo Vinicius de Moraes deu nome a várias de suas músicas, como "Bordões ao luar", a mais conhecida. O poeta Pablo Neruda a reverenciou no Chile.

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Mas, quando a filha casou, Amélia se mudou com ela para Goiás e veio nova pausa no piano profissional. Voltou em 1949, reinventada como Tia Amélia, graças ao incentivo da cantora Carmélia Alves. Robertos Carlos compôs “Minha tia” em sua homenagem. Egberto Gismonti, outro fã, fez para ela “Sete anéis” e costuma dizer que vê-la tocar cheia de gingado e sorrisos lhe abriu a cabeça.

Não só a dele. Quem tem mais de 60 anos talvez lembre de uma senhorinha de cabelos brancos presos num coque e um sorriso constante no rosto, que apresentava o programa “Velha estampa”, nas TVs Rio e Tupi, entre os anos 1950 e 60. Nessas idas e vindas, gravou 10 discos de 78 rotações e sete LPs com suas polcas, valsas e maxixes, sempre executadas com um espantoso suingue, que José Ramos Tinhorão chamou de “pererequice e malícia saltitante”. O último LP, ela registrou já com mais de 80 anos, pela Discos Marcus Pereira.

Geração nas sombras

O pianista Hercules Gomes se apresenta no MIMO Foto: Divulgação
O pianista Hercules Gomes se apresenta no MIMO Foto: Divulgação

Apesar da vasta obra e da incrível biografia, Tia Amélia corria o risco de ficar limitada à memória de seus velhos fãs. Seus discos não foram relançados em CDs. São poucas as partituras comerciais com sua obra. E os programas de TV, muitos deles transmitidos ao vivo, se perderam. Por isso, Hercules acredita que existe quase uma função social em focar neste tipo de repertório.

— Comprei todos os discos dela que achei em sebos e tirei algumas músicas de ouvido. Comecei a botar no YouTube minhas gravações caseiras, e sempre apareciam comentários de gente que lembrava de tê-la visto na TV, perguntando como ouvir suas músicas. Foi o estímulo para gravar o disco — conta o pianista, que no show de lançamento em São Paulo, há duas semanas, teve outro sinal: cerca de 100 pessoas não conseguiram entrar no teatro lotado.

“Tia Amélia para sempre” tem faixas de piano solo e outras com regional de choro, com arranjos de Nailor Proveta. A preocupação do pianista de 39 anos em gravá-la deve-se a toda uma geração que, acredita ele, ficou nas sombras.

— A gente ouve muito falar em Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga. Mas depois parece haver um lapso de décadas, como se entre eles e o início da bossa nova não tivesse nenhum pianista de peso — lamenta Hercules, que gravou em 2013 “Pianismo”, com temas próprios e composições de outros autores, e em 2018 lançou o disco “No tempo de Chiquinha Gonzaga”.

Capa do disco "Tia Amélia para sempre", de Hercules Gomes Foto: Divulgação
Capa do disco "Tia Amélia para sempre", de Hercules Gomes Foto: Divulgação

Por falar em Chiquinha, Alexandre Dias, diretor do Instituto Brasileiro de Piano (IBP), cita a compositora pioneira para mostrar a importância de trabalhos como o de Hercules. Ele lembra que, se hoje a autora de “Abre-alas” é reverenciada, passaram-se décadas até que viesse o definitivo sucesso póstumo.

— A biografia de Chiquinha lançada em 1984 por Edinha Diniz foi importante para essa guinada. Em 1985, virou tema de samba-enredo. Na década seguinte, Clara Sverner lançou um disco com seu repertório e aí veio a série de TV ( na Globo ). Quem sabe Hercules consegue puxar esse fio com a Tia Amélia —diz Dias.

‘Festeira demais’

A internet também ajuda a puxar o fio. É possível encontrar algumas partituras transcritas por Dias no site do IBP. O Instituto Moreira Salles tem algumas gravações de Amélia que foram colocadas online recentemente, em ambiente dedicado ao acervo de 78 rotações. E há outras no YouTube, feitas pela compositora a pedido de Jacob do Bandolim. Ao fim, ele a entrevista, e ela conta: “Meu estilo inicial era o clássico, mas abandonei logo porque era falsificado ( risos ). Eu era festeira demais!”

Sua música, como Hercules mostra, também é.