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Cultura

Obra do indígena Davi Kopenawa é 'o grande livro para entender a Amazônia hoje', diz Milton Hatoum

Para escritor, estereótipos retratam a região entre 'inferno e paraíso'
O escritor Milton Hatoum Foto: Marcos Alves / Agência O Globo
O escritor Milton Hatoum Foto: Marcos Alves / Agência O Globo

RIO — Autor de obras que se passam na Amazônia urbana, como "Dois irmãos", "Órfãos do Eldorado" e "Cinzas do norte" (esse, "um título que cabe ao momento", diz o escritor), Milton Hatoum enxerga a persistência de uma dualidade entre "inferno e paraíso" nos estereótipos que circulam sobre a região amazônica. Porém, acredita que na arte essa dicotomia foi superada.

Para Hatoum, obras como o filme "Iracema — Uma transa amazônica" ou o livro “Os rios profundos” do escritor peruano José María Arguedas, seriam exemplos disso. No entanto, vem da Amazônia profunda o livro que ele acredita ser a grande tradução desse universo simbólico e geográfico nesse momento de crise causado pelas queimadas que ameaçam a área.

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Para Hatoum, a obra do indígena Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert, "A queda do céu", uma mistura de testemunho autobiográfico e manifesto xamânico contra a destruição da floresta, "era o livro que faltava na nossa cultura". É o que ele diz nesta entrevista ao GLOBO, lembrando ainda outras obras que ajudaram a definir o universo simbólico da Amazônia nas artes.

O líder indígena Davi Kopenawa Foto: Felipe Hanower / Agência O Globo
O líder indígena Davi Kopenawa Foto: Felipe Hanower / Agência O Globo

Em meio a evidência internacional da região amazônica devido as queimadas, uma série de clichês como "pulmão do mundo" ou "selva idílica" são usados para retratar a região. Como a Amazônia aparece na sua obra?

A Amazônia dos meus livros é basicamente uma Amazônia urbana. “Dois irmaõs” e “Cinzas do norte” — aliás esse título cabe ao momento — são dramas familiares onde já aparece a destruição da cidade de Manaus e a destruição da floresta. As cidades da Amazônia estão envoltas pela floresta e pelos rios e a devastação no Polo de Manaus começou ainda na década de 1970.

Há uma cena forte no “Cinzas do Norte”. Em uma vasta área devastada, o personagem Ranulfo faz uma instalação a céu aberto, uma obra de arte, com a madeira carbonizada, calcinada, chamada “Campo de cruzes". Então a questão da devastação já estava presente no mundo urbano, na franja e na periferia da cidade.

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Nos anos 70 eu publiquei “Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas" um livrinho sobre a devastação com imagens de três fotógrafos. Quem estava atento à questão da Amazônia naquela época já sabia que essa devastação seria incontornável, irredimível.

Foi a época das grandes queimadas e isso está no filme do Jorge Bodansky, “Iracema - uma transa amazônica” que foi censurado na época no Brasil e passou primeiro na Alemanha. Ele filmou de dentro de uma Kombi uma queimada enorme na ( estrada ) Belém-Brasília.

Como enxerga a representação da Amazônia nas artes e em geral?

Do ponto de vista simbólico acho que há muitos filmes, fotografias, narrativas de ficção, poemas, que falam do mito e da devastação. A gente precisa superar essa dualidade da Amazônia ser retratada ou como paraíso ou como inferno. Acho que na arte a gente já superou. Mas até mesmo no século XX, a representação simbólica da Amazônia oscilou entre o paraíso e o inferno.

Há vários exemplos disso como o romance do colombiano o José Eustásio Rivera, “A voragem”, em que a selva devora tudo. O próprio Alberto Rangel, que era um amigo do Euclides da Cunha, escreveu “O inferno verde”. O Ferreira de Castro, no romance "A Selva", usou como metáfora da selva o cárcere.

Tudo isso está no imaginário do europeu, dos naturalistas desde o século XVIII que andaram pela Amazônia. E produziu os clichês e estereótipos do caboclo e do índio preguiçoso. Tudo isso contribuiu para uma visão negativa da região.

O próprio Euclides criticou a derrubada das árvores feita por seringueiros perunos nos “Ensaios amazônicos” que ele reuniu no livro “À margem da história”. Mas o leitor percebe a impotência do Euclides diante da complexidade da natureza. Tanto que ele tem uma frase que acho genial em que ele diz que “A Amazônia é um infinito que deve ser dosado pouco a pouco”.

E quando essas dualidades começaram a ser superadas?

Acho que uma das reviravoltas foi feita pelo Mário de Andrade. No “Turista aprendiz” ele vê a questão da exploração do seringueiro e tenta integrar esse homem da Amazônia à sociedade brasileira. Ele tenta ver esse "outro' da amazônia como um brasileiro que nem nós. Tem “Macuinaíma”, que é uma espécie de mito de origem do Brasil.

Há outros relatos e filmes importantes como “Brincando nos campos do senhor” do Héctor Babenco. Tem as fotos da Claudia Andujar, do Luiz Braga, que tem um olhar muito particular sobre a cultura amazônica. “Os passos perdidos” do Alejo Carpentier, que é uma viagem mítica, em busca dos sons originais da floresta. O “Kuarup”, do Antonio Callado.

E tem também o romance forte do Márcio Souza, o “Mad maria”, que fala da madeira mamoré, da loucura que foi a estrada de ferro lá em Porto Velho.  Tem “Maíra”, escrito por Darcy Ribeiro.

E qual obra mais recente você acredita que joga um novo olhar sobre a região?

O grande livro sobre a Amazônia é do Davi Kopenawa (com Bruce Albert), “A queda do céu”, que não é uma ficcção. Mas esse é o momento pra esse livro ser lido, citado, porque ele fala da importância fundamental da floresta, da simbiose da natureza com o homem, com os indígenas e com o cosmos. Eles estão queimando não só a floresta, eles estão queimando toda uma história. A queima da floresta é a queima de uma história milenar. É um crime contra a humanidade.

Capa de 'A queda do céu' Foto: Divulgação
Capa de 'A queda do céu' Foto: Divulgação

É o grande livro pra entender a Amazônia hoje. Porque é a confiança de um grande antropólogo com um xamã. Esse era o livro que faltava na nossa cultura. O pensamento dos indígenas é diferente do pensamento dos brancos, eles não veem a natureza como mercadoria. É um pensamento totalmente refratário ao dos brancos, uma visão de mundo totalmente diferente. Ele diz que seus verdadeiros bens são as coisas da floresta, as águas, os peixes, as caças, a árvore, os frutos... não são as mercadorias.

E o que você gostaria de ler sobre a Amazônia que ainda não leu?

Eu gostaria de ler um romance escrito por um indígena. Existem já mitos publicados por indígenas, há várias histórias de ficção de indígenas voltados para literatura infantil. Há também um romance sobre essa questão que é do José María Arguedas ( escritor peruano ), “Os rios profundos”.

Mas acho que o romance não vai demorar, vai acontecer sem muita demora. Há muitos indígenas hoje que podem pensar nisso.  Mas “A queda do céu” já me satisfaz e muito.