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Cultura

Obras e ações contra o colonialismo ganham força na academia e nas artes

Movimento decolonial resgata memória africana e indígena e problematiza estruturas eurocêntricas
Obra sem título de Rosana Paulino, uma das peças analisadas no livro 'Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais" Foto: Claudia Melo / Divulgaçaõ
Obra sem título de Rosana Paulino, uma das peças analisadas no livro 'Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais" Foto: Claudia Melo / Divulgaçaõ

RIO —  As imagens da estátua do escravocrata britânico Edward Colston sendo jogada nas águas do porto de Bristol, Inglaterra, correram o mundo em junho. A ação inspirou e segue inspirando outras derrubadas de monumentos de figuras coloniais em vários países — e provoca um acalorado debate sobre memória e representação na esfera pública. Esta semana, o próprio rei da Bélgica, Filipe Leopoldo, pediu desculpas pela violência cometida por seu país durante o período colonial do país africano. São manchetes que remetem a um adjetivo que tem ganhado força na produção acadêmica e artística: decolonial.

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O conceito engloba trabalhos que escancaram as consequências do colonialismo, viram a chave eurocêntrica e resgatam uma identidade africana apagada — e, acima de tudo, que ajudam a entender disputas políticas pelo imaginário social.

São decoloniais as escravas negras e guerreiras indígenas representadas pelas artistas Rosana Paulino e Marcela Cantuária. Suas obras, aliás, aparecem reunidas e comentadas no recém-lançado “Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais” (Bazar do Tempo). A ideia também surge do pensamento da cientista política Françoise Vergès, francesa autora de “Um feminismo decolonial”, que chega agora ao Brasil pela editora Ubu. Está também na dramaturgia “Colônia”, de Gustavo Colombini, encenada em 2018, que explora os sentidos de seu título. Ou no espetáculo “Sons d’oeste”, da companhia de dança paulistano Trupe Benkady, em cartaz na Sesc TV.

— De uns anos para cá, há uma utilização ampla das ideias decoloniais, em movimentos sociais e religiosos na filosofia, na geografia, nas artes — explica Pablo Quintero, professor adjunto do departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

As novas ideias se espalham entre diversas correntes, cada uma com suas especificidades. Há quem se considere pós-colonial, anticolonial, contracolonial... ou todas as coisas juntas. Mas, recentemente, decolonial se tornou o termo mais usado para definir obras e movimentos.

‘Meu lugar na estrutura’

Quando Rosana Paulino iniciou sua carreira, há 25 anos, as ideias decoloniais ainda estavam recém chegando às universidades, e por isso não a influenciaram diretamente. Seu trabalho, porém, as incorpora. O conjunto de obras de “Atlântico vermelho”, que aparece no “Pensamento feminista hoje”, dialoga no livro com textos de pensadoras como Maria da Graça Costa. Rosana combina arte têxtil, gravuras, colagens e xerox de fotos e retrata corpos incompletos de mulheres negras, que perderam suas referências e tiveram suas memórias arrancadas.

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— Vemos agora essa produção acadêmica influenciar os artistas mais jovens — diz Rosana. — Quando comecei, o modelo artístico ainda era o branco eurocêntrico masculino, esse suposto universal. Para mim, a questão sempre foi achar o meu lugar dentro dessa estrutura.

O bailarino Leandro Souza no espetáculo "Eles fazem", uma das atrações da série "Dança Contemporânea", do SESCTV Foto: Alex Ribeiro / Visor Magico / Divulgação
O bailarino Leandro Souza no espetáculo "Eles fazem", uma das atrações da série "Dança Contemporânea", do SESCTV Foto: Alex Ribeiro / Visor Magico / Divulgação

Primeira curadora negra da série “Dança contemporânea”, do Sesc TV, a gestora cultural Gal Martins conta que a palavra decolonial começou a ser usada há uns cinco anos na cena contemporânea. E teria até causado conflito: segundo ela, houve um “racha” quando alguns artistas cobraram uma maior representatividade nos editais. A pressão surtiu efeito, e o resultado pode ser visto agora nos últimos episódios da série, que apresentam projetos de artistas negros como Leandro Souza, Djalma Moura e o coletivo Calcâneos.

— Passamos a abrir mais os olhos para resquícios coloniais naturalizados ao longo dos séculos — acredita o professor de Filosofia da UFRJ Renato Noguera. — As mudanças vão desde coisas cotidianas, como mais produtos para cabelos negros até, claro, derrubada de estátuas.

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Noguera escreve a apresentação do recém-lançado “Alienação e liberdade”, reunião de estudos do psiquiatra Frantz Fanon, referência da militância anticolonial. Uma das observações de Fanon é de que, mesmo tendo crescido em uma família normal, uma criança negra ficará anormal em qualquer contato com o mundo branco.

— Há uma explicação para uma cozinheira negra não ser vista como chef. No discurso da colonialidade, tudo que é europeu e ocidental é mais gabaritado do que aquilo que vem de indígenas ou africanos. — diz Noguera. — Eu mesmo não me considero exatamente um decolonial, mas meu trabalho dialoga com esses estudos. E, na hora dos protestos, todos se juntam. A mensagem é: nossa orientação ética não se alinha mais aos valores coloniais. Não estamos mais de acordo com esse projeto em nosso presente.

Mais sobre as ideias decoloniais

“Lições "de resistência”, de Luiz Gama

"Reúne os textos jornalísticos do poeta e abolicionista negro Luiz Gama. Recém-lançada em ebook, a obra conta uma outra história do abolicionismo, iluminando a importância de Gama."

“Um feminismo decolonial”, de Françoise Vergès

" "Francesa criada na Ilha da Reunião, a cientista política e historiadora leva em conta as consequências da colonização nas relações cotidianas para repensar o feminismo por dentro. "

“Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais”, org. Heloisa Buarque de Hollanda

"Reunindo o trabalho de 22 autoras, o livro oferece um panorama do pensamento decolonial feminista, indo da política às artes plásticas.

“Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico”, vários autores

"Com vários artigos, a obra busca um diálogo horizontal entre feministas, intelectuais e ativistas antirracistas, "teóricos decoloniais e a própria população negra.

“Memórias da plantação”, de Grada Kilomba

Livro mais vendido na Flip de 2019 (e sucesso-surpresa do evento), é uma compilação de episódios cotidianos de racismo, escritos sob a forma de pequenas histórias psicanalíticas.