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Cultura Celina

Os bastidores de 'Vista Chinesa', romance sobre um estupro real

A escritora Tatiana Salem Levy narra em novo livro episódio de violência sexual sofrido pela amiga, a diretora de TV Joana Jabace, que fala pela primeira vez sobre o trauma
A escritora Tatiana Salem Levy e a diretora de TV Joana Jabace Foto: Arte sobre fotos de Pedro Loureiro e Nana Moraes
A escritora Tatiana Salem Levy e a diretora de TV Joana Jabace Foto: Arte sobre fotos de Pedro Loureiro e Nana Moraes

O coração vem à boca, o corpo é tomado pelo nojo, pela revolta e, por fim, pela compaixão. Todas essas sensações vêm à tona durante a leitura do novo romance de Tatiana Salem Levy. “Vista Chinesa”, que chega às livrarias pela Todavia no dia 9 de março (a pré-venda começou nesta quinta, 18), é um romance baseado no estupro real sofrido por uma das melhores amigas da autora, na Floresta da Tijuca. O caso ocorreu em 2014, num Rio de Janeiro tomado pela euforia da Copa do Mundo e com os Jogos Olímpicos de 2016 à vista.

Na obra, a protagonista que narra seu próprio estupro em uma carta aos filhos se chama Júlia. Na realidade, quem viveu o horror tem outro nome e muita coragem para revelar sua identidade em nota publicada no final do livro: “Não tenho vergonha do que aconteceu. Eu quero que você escreva que isso aconteceu de verdade. E aconteceu comigo: Joana Jabace”, diz o texto.

Carioca, 40 anos, Joana é diretora da TV Globo, responsável por programas como “Segunda chamada”, mãe dos gêmeos Francisco e José, de 3 anos, frutos do casamento com o roteirista e ator Bruno Mazzeo. Numa tarde de agosto, ela saiu para correr no Alto da Boa Vista. No final do Muro do Alívio, paredão chamado assim por ser um ponto em que a estrada deixa de ser tão íngreme, um homem encostou o cano de um revólver em sua cabeça, a arrastou mata adentro e a estuprou.

O episódio de violência sexual, eixo da obra de Tatiana, é narrado com uma riqueza de detalhes perturbadora. Pode provocar uma insônia tomada pelas imagens descritas no livro e até pelo cheiro da floresta entrando pelo nariz. A autora despeja toda aquela agonia com crueza e, muitas vezes, sem o respiro da pontuação. Como se o texto fosse bile saindo pela garganta.

Receio de acusar um inocente

Tatiana integrou a rede que apoiou Joana no longo, angustiante e doloroso processo de investigação em busca do criminoso. Mesmo morando em outro país (Portugal), acompanhava atenta, pelo telefone, a jornada de depoimentos, retratos falados, idas à delegacia para reconhecer suspeitos e forte pressão da polícia para prender alguém (em um país onde basta ter cara de pobre para ser suspeito). Até o dia em que Joana, diante da incerteza de ser capaz de reconhecer o culpado e do receio de encarcerar um inocente, encerrou o caso.

A ideia de transformar a história em romance surgiu meses depois, quando a escritora viu, em uma exposição, a série de retratos “Os inocentes”, da fotógrafa americana Taryn Simon. No foco, pessoas que foram presas injustamente a partir do reconhecimento das vítimas. Tatiana, então, pensou na amiga, que topou ter sua história contada, mas hesitou várias vezes até decidir revelar sua identidade. Pouco depois, no entanto, Tatiana se descobriu grávida do primeiro filho, Vicente, e engavetou a ideia. Não queria escrever sobre um estupro no momento em que gerava uma vida. Poderia fazer mal ao bebê.

Três anos se passaram até que a autora se viu grávida novamente, desta vez, de uma menina. Esther provocou na mãe um sentimento inverso: a necessidade não só de escrever, como de escrever sobre um tipo de crime que, no Brasil, vitima uma mulher a cada 8 minutos, segundo dados de 2019 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A gestação evocava os medos inerentes à condição de mulher e, justamente por isso, lhe dava motivação para seguir adiante.

Também para ajudar outras mulheres, Joana decidiu ir além do divã de sua psicanalista e se expor publicamente.

— Pus meu nome porque essa história tem um nome, uma cara, existe mais que um romance. Outras mulheres que passaram por isso podem ver que a vida segue. O movimento feminista ganhou força, fala-se muito sobre abuso, mas ainda pouco sobre estupro. Existe um tabu. Tinha a sensação de que, para sempre, seria uma mulher estuprada, que isso estaria dado em todas as minhas relações. Como conseguiria me relacionar sexualmente, afetivamente? Conseguiria ser leve, ter fantasias, me deslocar? Talvez nunca me desloque.

Em “Vista Chinesa”, a protagonista conta que o estupro ficou impresso em seu corpo. Sensação que Joana conhece bem e fica mais particular quando se sabe da obsessão dela, uma ex-adolescente que sofreu por ser gordinha, pelo corpo perfeito:

— O livro fala dessa exigência da beleza, do padrão da mulher carioca: a magreza. Sou fruto disso. E pensava sobre o quanto o dilaceramento interno que o estupro gerou estaria visível aos outros. Sentia muita vergonha.

Contar pela primeira vez, com os mínimos detalhes, o que passou foi uma espécie de cura do incurável, que se deu por meio de entrevistas conduzidas por Tatiana e troca de áudios entre as duas.

— Eu e Joana temos uma característica  em comum: somos muito "perguntadeiras", não temos vergonha. Então, eu sabia que podia perguntar tudo para ela. E Joana não fugiu de nada. Pelo contrário, foi contando tudo em detalhes, de uma forma que nunca tinha contado — lembra Tati. —  Foi quando eu entendi que a escrita do livro tinha que focar nos detalhes. Porque quando acontece um trauma, de forma geral, a gente evoca o inimaginável, o indizível, o "foi tão horrível que não tem palavras".  Existe, na literatura e nas artes em geral, uma tendência de contornar o que é traumático, de narrar pelas bordas. Mas a minha opção foi narrar frontalmente, dar nome às coisas. Sinto como se fosse um dever fazer com que os outros imaginem o inimaginável.

Entre mães e filhos

Conforme falava, Joana percebia que aquele processo a ajudava a tornar palpável o trauma que vivera.

— Falar foi me tirando da abstração da dor. É como se eu desse uma concretude para o fato. E quando eu lia o texto da Tati, muito profundo, parecia que tudo vinha de dentro de mim, me sentia representada. Foi catártico. É como se houvesse salvação para mim por meio do livro. Minha mãe leu e ficou aos prantos, mas agora sabe exatamente o que aconteceu comigo. Acho melhor assim.

Joana pensa o mesmo em relação aos filhos:

— São dois meninos e prefiro que saibam. Porque sou o que aconteceu comigo. As pessoas dizem: "Como você é forte". Não sou forte, sou pragmática, objetiva, tenho a capacidade de seguir adiante, mas isso fica em mim. O livro é a possibilidade de dividir, de fazer a travessia — analisa Joana, que pretende transformar a obra em filme. — A escrita da Tati é imagética, sensorial, sensível, é um convite a se filmar. A possibilidade de transpor todo o trauma para a minha linguagem artística me faz pensar em como a arte pode nos ajudar a viver.

A premissa de o livro ser uma carta aos filhos tem a ver com o estilo de escrita de Tatiana. Se em seus livros anteriores (“A chave de casa”, com que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura como autora estreante, em 2008; “Dois rios” e “Paraíso”) ela trabalhou com a herança que os personagens traziam dos antepassados, algo importante para a construção da própria subjetividade da autora, a lógica se inverteu quando se tornou mãe. Passou a se preocupar com o que deixaria para eles.

— Aí, pensei na Joana ter engravidado ( três anos ) depois do estupro e passei a questionar se as crianças que cresceram naquele corpo violentado sabiam. Acho que, de algum jeito, a gente sabe.

A escritora conta ter crescido com medo de ser estuprada. Apesar de o sentimento fazer sentido para qualquer mulher, ela não entendia muito bem a origem daquele pavor que sentia. Até que, quando fez 18 anos, sua mãe revelou que havia sido violentada durante um assalto. Tatiana tinha 4 anos na época do crime:

— Dois anos depois de me contar, ela morreu. Fiquei com a sensação de que, de alguma forma, eu já sabia. Eu existia quando aconteceu. A gente mudou de casa por causa disso. Passei anos me perguntando: “E se ela nunca tivesse me contado?”

Ao relatar sua história, Joana espera provocar debates sobre o que as vítimas de estupro fazem com o resto de suas vidas.

— Como é ser estuprada e continuar seguindo? Sendo mãe, casada, transando, se masturbando, trabalhando. O livro pode ajudar nessa reflexão. Porque é uma dor determinante, mas a vida continua.

Não como antes.

— Olhando de fora, nada mudou. Continuei no trabalho, na mesma relação com o Bruno. Mas internamente sou outra pessoa. Penso nisso todos os dias. Acho que sou mais triste agora.

Serviço:

Vista Chinesa, que será lançado pela editora Todavia, é o quarto romance da escritora Tatiana Salem Levy Foto: Reprodução
Vista Chinesa, que será lançado pela editora Todavia, é o quarto romance da escritora Tatiana Salem Levy Foto: Reprodução

"Vista Chinesa"

Autora: Tatiana Salem Levy. Editora: Todavia. Páginas: 112. Preço: R$ 54.90