Cultura

'Os indígenas podem nos ajudar a evitar que pandemias se tornem mais recorrentes', diz Aparecida Vilaça

Em 'Morte na floresta', antropóloga analisa como culturas ancestrais lidam com doenças e desequilíbrios ambientais que podem se tornar mais recorrentes
A antropóloga Aparecida Vilaça Foto: Ana Branco / Agência O Globo
A antropóloga Aparecida Vilaça Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO — Quando um membro do povo wari adoece, seus parentes logo desconfiam que se trata da vingança de um espírito animal. Assim como em outras culturas indígenas, eles mantêm uma relação de respeito e equilíbrio com seus coabitantes na floresta. Caso os tratem de forma exploratória, poderão sofrer na própria pele as consequências.

É este tipo de conexão com o meio ambiente que a antropóloga Aparecida Vilaça, que acaba de lançar o livro “Morte na floresta” (Todavia), defende que deveríamos procurar nesse momento. Cientistas apontam cada vez mais que a exploração descontrolada da natureza é uma das principais causadoras de novas doenças entre humanos, como a Covid-19. Para Vilaça, deveríamos ouvir os povos das florestas para evitar que pandemias deste tipo se tornem cada vez mais frequentes.

Premiados: Aparecida Vilaça e Silviano Santiago vencem o Casa de Las Americas

Você fala de forma provocativa que na pandemia “somos todos indígenas”. Pode explicar?

Esse frase é do Bruce Albert, que escreveu “A queda do céu", com o Davi Kopenawa. Uso esse título para apontar a fragilidade que estamos experimentando. Há um vírus que desconhecemos, sem remédio, sem vacina, e estamos morrendo em quantidade. É a experiência de epidemia que eles têm desde o século XVI, que nos atingiu no decorrer da história, mas nesse momento as coisas se juntaram. O problema é que indígenas seguem sendo mais atingidos, pois têm menos acesso a tratamento. Além disso, são sociedades de tradição oral, em que a perda dos anciãos é uma interrupção irreversível de sua transmissão de conhecimento.

Pode se comparar a um incêndio numa biblioteca, como você aponta no livro.

Sim, mas com a diferença de que é uma biblioteca com manuscritos sem cópia e sem possibilidade de reposição. Um conjunto de modos de viver, forma de falar, contar as histórias está ligado ao corpo físico do sabedor das tradições. Quando uma importante fazedora de cestos de um povo morre, ela não deixa uma receita de “ah, duas tranças pra cá, duas por baixo”. Mesmo que esteja preparando alguém mais jovem para aprender, não será o mesmo que olhar para a pessoa mais velha.

'A tensão superficial do tempo': Cristovão Tezza usa desilusão do Brasil atual como pano de fundo de seu novo romance

E como indígenas interpretam a chegada dessas epidemias?

Muitos povos sul-americanos pensam o mundo como uma humanidade distribuída por espíritos que vivem pela floresta, animais, grupos vegetais e até objetos. E as relações entre esses seres têm que ser sociais, afinal são relações entre pessoas. Não podem ser de mera exploração. Envolvem respeito, normas de caçar e comer. Existe uma negociação espiritual para capturar animais, sempre com o risco deles se vingarem caso o respeito não seja mantido. Quebrar o acordo significa que um espírito pode vir e “levar um membro do grupo embora”, fazendo ele adoecer e morrer. Por isso também é crucial que os parentes estejam junto da pessoa adoecida, conversando, cuidando, tocando, para assegurar que ele permaneça e não seja capturado. E essa presença se opõe completamente aos protocolos de tratamento da Covid-19, para o terror desses povos.

Já virou um clichê falar no “novo normal” do pós-Covid-19. Mas os indígenas já sabem há séculos o que é se adaptar a novas realidades, não é?

Ailton Krenak fala que o fim do mundo para os indígenas começou no século XVI. Eles estão experimentando uma série de fins do mundo. Estão acostumados com restrições como os limites das reservas que acabam e vão se encolhendo. É algo que estamos experimentando em outra escala com a quarentena: não poder sair de casa, não ter acesso a lugares que íamos. O novo normal para eles é há muito tempo conviver com a constante mudança radical do mundo que conhecem.

Qual paralelo podemos traçar entre a história da civilização ocidental e a ação do vírus?

Lévi-Strauss chamava nossa sociedade de “civilização viral”. O vírus invade os corpos para capturar as informações genéticas e colonizar no sentido de replicar, fazer células iguais a ele. É a mesma ideia da colonização europeia na América do Sul e a atual colonização que o governo brasileiro quer impor não só aos indígenas, como a outras minorias. A colonização vai matando e procurando outros corpos para se perpetuar. Nossa civilização vê a diferença como monstruosidade. Quer exterminar ou domesticar, fazer corpos iguais a si.

Como indígenas podem nos ensinar a lidar com o caos ambiental que experimentamos cada vez mais?

Precisamos deixar de nos ver como indivíduos autocontidos para entender que fazemos parte de um sistema ligado de maneira indissociável. Com essa pandemia, poderíamos aprender como as zoonoses têm a ver com a desconexão com animais, com o desequilíbrio que os tira de seu habitat natural e faz uma série de doenças se proliferarem. Como diz Krenak, “Quantas Terras vamos ter que destruir para entender que nosso modo de vida está errado?”. Os indígenas podem nos ajudar a evitar que essas pandemias se tornem mais recorrentes.