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Cultura

Pandemia de Covid-19 'escancarou' as desigualdades no Brasil, afirma Lilia Schwarcz na Flip

No penúltimo dia do evento, professora titular de antropologia da USP também opina que Jair Bolsonaro é um 'sintoma' do autoritarismo, que já estava presente no Brasil desde a Constituição de 1988
A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz na Flip 2020, em mesa mediada pela jornalista Flavia Lima (acima na direita) e pela socióloga Flavia Rios (abaixo) Foto: Reprodução
A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz na Flip 2020, em mesa mediada pela jornalista Flavia Lima (acima na direita) e pela socióloga Flavia Rios (abaixo) Foto: Reprodução

RIO — Professora titular de antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e historiadora, Lilia Schwarcz afirmou neste sábado que a pandemia escancarou as desigualdades no Brasil, afetando sobretudo a população pobre e, principalmente, negra durante participação na edição digital da Festa Literária de Paraty (Flip) .

— A pandemia entrou no Brasil como se fosse uma doença democrática, mas rapidamente mostrou que não tinha nada de democrática. Se podia ser democrática na contaminação, não era democrática no número de mortes. Ela afetou sobretudo as populações pobres e, dentre as populações pobres, nomeadamente as negras — afirmou Lilia. — Uma pandemia não traz nada, mas escancara algumas características do país. Nesse caso, a desigualdade.

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A antropóloga, que é autora de  livros como "Lima Barreto: visionário" e, mais recentemente, "Sobre o autoritarismo brasileiro" (2019), esteve na mesa 6 da Flip, chamada "Sobre o autoritarismo", que foi mediada por Flavia Lima, jornalista e ombudsman do jornal Folha de S.Paulo, e Flavia Rios, socióloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Questionada sobre o presidente Jair Bolsonaro e seu governo, a antropóloga opinou que Bolsonaro é "um sintoma do nosso autoritarismo", que, segundo ela, não é o único elemento que explica o avanço desse sistema no Brasil.

— Na verdade, não se trata de um retorno. Ele ( o autoritarismo ) sempre esteve aí, um pouco de lado, com um pouco de vergonha, desde a Constituição de 1988 —  opina Lilia. —  Não existe democracia plena, mas vamos dizer que nós tínhamos governo de perfil mais democrático, se não a gente não entende a eleição de Jair Bolsonaro.

Para ela, Bolsonaro faz parte de um movimento internacional que começou já em 2017, com governos que se caracterizam por serem formados por homens, que governam de forma "muito viril", que não conversam com a população, populistas e sempre com "frases curtas, rápidas, de fácil e breve absorção".

Segundo a antropóloga, a novidade foi como eles foram eleitos:

— O que é novo neste momento no Brasil e fora é o fato de esses governos populistas, autoritários e tecnocratas conseguirem se eleger a partir das redes sociais. É uma novidade muito forte no mundo e muito forte no Brasil.

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Durante a conversa, citando o caso da noite desta sexta-feira em que duas crianças foram mortas vítimas de bala perdida na Baixada Fluminense, Flavia Lima questionou a antropóloga por que "mesmo governos que se disseram democráticos" foram tão "tímidos" em mexer na estrutura da polícia, que, segundo a autora em seu livro mais recente, trataria os cidadãos de forma diferente.

— É uma questão crônica, urgente, que os governos decidem não tomar a frente porque não é uma questão popular, assim como a pandemia. Basta olhar aqui em São Paulo, que as medidas de controle dessa que será muito provavelmente uma segunda onda da pandemia só foram tomadas depois das eleições, ou seja, temos esse jogo politico sistemático — explica a antropóloga, apontando que, apesar de discordar das propostas, Bolsonaro colocou o tema em discussão durante sua campanha. — Esse tipo de tema que não traz voto, que é desagradavel, que mexe com a estrutura é sempre adiado. E eu diria que também é sempre adiado pelas nossas mídias.

Ao final da conversa, Lilia destacou o fato de a mesa ser formada por três mulheres, sendo duas negras. E salientou o papel do feminismo negro na sociedade, que "tem dado uma lição de moral, revertendo a História, contando uma outra narrativa":

— Eu estou convencida que nós não teremos uma democracia no Brasil, como dizem os movimentos negros, enquanto o Brasil for tão racista.

Mais mesas

Ainda neste sábado a Flip terá outras duas mesas. A primeira, às 18h, com o tema "Ancestralidades", com dois romancistas: um brasileiro, Itamar Vieira Junior, e um nigeriano, Chigozie Obioma, falando sobre a vida rural de personagens que vivem às voltas com religiosidades de matriz africana. O evento tem mediação de Ángel Gurría-Quintana, que é jornalista, editor e tradutor.

Mais tarde, às 20h30, a mesa "Transições", terá o músico Caetano Veloso e o escritor espanhol Paul B. Preciado, para falar sobre liberdade, contando sobre suas próprias histórias de quebra de paradigmas, também com mediação de Gurría-Quintana.