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Cultura

Pandemias do passado deixaram marcas nas cidades. Como será o urbanismo pós-coronavírus?

Espaços públicos arejados voltam ao foco, assim como residências pensadas para incluir home office e ensino
As “escolas ao ar livre”, construídas nos anos 1930 em Suresnes, França, são exemplo de arquitetura antipandêmica Foto: AFP
As “escolas ao ar livre”, construídas nos anos 1930 em Suresnes, França, são exemplo de arquitetura antipandêmica Foto: AFP

O desenho das principais metrópoles do mundo foi traçado conforme a ordem econômica e social — mas também pela catástrofe. O Grande Incêndio de Londres, em 1666, e o Terremoto de Lisboa, em 1755, por exemplo, definiram a paisagem destas capitais. O que a Covid-19 nos faz lembrar é o quanto pandemias também moldaram a arquitetura e o urbanismo. As cidades têm a marca das doenças que enfrentaram: dos bulevares abertos na Paris assolada pela cólera no século XIX ao Central Park criado para livrar o ar de Nova York de “miasmas”, passando pelo Bota-Abaixo de Pereira Passos, cujo pretexto para derrubar cortiços era livrar o Rio de surtos de varíola e febre-amarela — surtos realocados com seus moradores, aliás.

Hoje, é incontornável que arquitetos e urbanistas debatam quais serão as mudanças nas cidades e habitações após o impacto do coronavírus — futuros congressos devem se debruçar sobre a questão de criar espaços que conciliem residência, trabalho e escola sob o mesmo teto. Mas antigas novidades, como o saneamento básico e o arejamento de vias e construções, também são bem vindas. Em países como o Brasil, a ausência deles é inclusive obstáculo ao combate da Covid-19, como mostram estatísticas de contágio e mortes em áreas de moradias precárias.

— O home office pode ajudar a reduzir o trânsito e os deslocamentos, mas também aumentar a vida em bolhas, que já experimentamos no ambiente virtual — observa Guilherme Wisnik, arquiteto, ensaísta e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. — Pode haver uma mudança em relação ao ciclo que vivíamos, mais voltado ao compartilhamento, com espaços de coworking, imóveis do Airbnb.

As epidemias já enfrentadas pela humanidade tiveram um efeito além dos números elevados de casos e mortes. Ao longo dos séculos, surtos epidêmicos foram catalisadores de mudanças estruturais, definiram protocolos de ação diante de problemas biológicos e transformaram a arquitetura dos países por onde passaram
As epidemias já enfrentadas pela humanidade tiveram um efeito além dos números elevados de casos e mortes. Ao longo dos séculos, surtos epidêmicos foram catalisadores de mudanças estruturais, definiram protocolos de ação diante de problemas biológicos e transformaram a arquitetura dos países por onde passaram

A casa deixou de ser só dormitório e voltou a ser o centro do mundo, pondera Marcela Abla, copresidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio (IAB-RJ):

— Compreendendo melhor a casa, podemos planejar melhor as cidades, que deveriam ser pensadas não para um habitante genérico, mas a partir das diferenças das pessoas que nelas vivem. Pensar questões sociais, etárias, raciais e de gênero também é urbanismo.

Romanos e modernistas

A relação entre o desenho das cidades e as questões sanitárias é tão antiga quanto a própria civilização. Como lembra o arquiteto e urbanista Augusto Ivan, autor de “Porto do Rio: Construindo a modernidade”, os romanos já pensavam na abertura para o sol e altura dos prédios nas cidades que construíam.

Pior epidemia da História, que dizimou meia Europa no século XIV, a peste bubônica trouxe medidas sanitárias praticadas até hoje, como quarentenas e proibições de viagens, e intervenções urbanísticas, diz o historiador Marcos Leitão de Almeida:

— Uma das intervenções que alteraram profundamente a paisagem urbana foi o surgimento de túmulos monumentais, que idealizavam nobres mortos pela doença.

As “escolas ao ar livre”, construídas nos anos 1930 em Suresnes, França, são exemplo de arquitetura antipandêmica Foto: AFP
As “escolas ao ar livre”, construídas nos anos 1930 em Suresnes, França, são exemplo de arquitetura antipandêmica Foto: AFP

Um das respostas mais recentes veio na arquitetura modernista. Seus espaços abertos, bem iluminados, com farta circulação de ar e uso de materiais mais fáceis de limpar foram um reflexo dos surtos de tuberculose no século XIX e princípio do XX — um bom exemplo são “as escolas ao ar livre” de Suresnes, na França.

No livro “X-ray architecture”, a espanhola Beatriz Colomina mostra que os modernistas foram influenciados pelos sanatórios que surgiam na Suíça, com suas superfícies brancas e paredes envidraçadas. Acusada de ser estéril, a arquitetura modernista é, na verdade, esterilizada.

Urbanismo comunitário

O arquiteto e urbanista Washington Fajardo aponta que algumas comunidades têm conseguido resultados melhores contra o coronavírus do que governos, como Paraisópolis, em São Paulo, ou o Complexo do Alemão, no Rio.

— É evidente que essas comunidades têm capacidade gerencial de criar políticas que funcionem para elas. Mas é importante que elas estejam no foco das políticas públicas. As favelas até recebem infraestrutura, mas não são controladas. Isso faz com que sejam territórios sempre flexíveis e em crescimento, o que acaba implicando na construção de espaços insalubres.

Professor de Arquitetura da Universidade Federal Fluminense, Pedro da Luz Moreira também lembra da Rocinha, onde a tuberculose, causada por fatores como a falta de ventilação e luz solar, preocupa tanto quanto a Covid-19. Ele acredita que a saúde será destaque no 27º Congresso Mundial dos Arquitetos, que seria realizado este mês no Rio, mas foi adiado para 2021 por conta da pandemia.

— Uma cidade que promova saúde já é um tema constante. O urbanismo pode estimular hábitos como exercícios e caminhadas, ao oferecer boas calçadas, em vez de privilegiar espaços para carros. Mas também deve se voltar à saúde psíquica, dotando diferentes áreas da cidade com equipamentos educacionais e de lazer.

Cicloativistas torcem para que vias fechadas a carros nos EUA e na Ásia permaneçam assim, e já há especialistas dizendo que o coronavírus acelerou o fim das megacidades — com os contras superando os prós das metrópoles.

Membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, Luiz Fernando Janot acredita que hospitais, shoppings e presídios serão modificados a partir da pandemia. A dúvida paira sobre a arquitetura habitacional, inserida no contexto da própria cidade.

— Cidades são o reflexo da sociedade. O mais relevante é entender como a sociedade vai mudar com a pandemia — opina Janot. — O que puder se aproveitar dos espaços públicos, ao ar livre, pode não só diminuir a pressão da pandemia. Pode também proporcionar proximidade entre seres humanos e o entendimento das suas diferenças.