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Cultura Brasília

Para AGU, opiniões contra movimento negro não impedem manutenção de presidente da Fundação Palmares

Sérgio Camargo foi barrado do cargo por declarações polêmicas nas redes sociais
Sérgio de Camargo, que havia sido nomeado presidente da Fundação Palmares, disse que o Brasil "tem racismo nutella" Foto: Reprodução
Sérgio de Camargo, que havia sido nomeado presidente da Fundação Palmares, disse que o Brasil "tem racismo nutella" Foto: Reprodução

BRASÍLIA - Ao recorrer da decisão da Justiça Federal que suspendeu a nomeação do jornalista Sérgio Camargo para presidência da Fundação Cultural Palmares , a Advocacia-Geral da União ( AGU ) argumentou que opiniões compartilhadas em redes sociais e posicionamentos contrários "a algumas diretrizes do Movimento Afrodescendente" não são impedimentos para a ocupação do cargo. A alegação é que isso representaria uma " violação à liberdade de expressão e aos princípios constitucionais da legalidade e impessoalidade."

O recurso, ao qual O GLOBO teve acesso, foi apresentado na última sexta-feira ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) e alega ainda que a  ausência de alguém no comando da Fundação Palmares, em razão da decisão do juiz federal, paralisa os trabalhos do órgão. A suspensão de Camargo havia sido determinada no último dia 4 após o juiz Emanuel Guerra, da 18ª Vara Federal do Ceará, acatar um pedido de uma ação popular.

Entenda: Qual o papel da Fundação Cultural Palmares para o Brasil

Em redes sociais, conforme revelou O GLOBO, Camargo disse que no Brasil não existe "racismo real" , que a escravidão foi "benéfica para os descendentes" e que o movimento negro precisa ser "extinto".  O novo presidente da Palmares, órgão responsável pela preservação  da cultura afro-brasileira,  defendeu o fim do feriado da Consciência Negra, criticou manifestações culturais  e religiosas ligadas à população negra e atacou diversas personalidades negras, como casal de atores Taís Araújo e Lázaro Ramos,  ex-vereadora Marielle Franco (assassinada em março de 2018), o sambista Martinho da Vila, entre outros.

"O fato de qualquer cidadão brasileiro emitir suas opiniões em redes sociais não é um impedimento constitucional ou legal para ser investido em cargo público comissionado. Ademais, o fato de ser contrário a algumas diretrizes do Movimento Afrodescendente também não pode ser considerado um empecilho legal ao provimento do nomeado no cargo em comissão de Presidente da FCP. Isso representaria uma violação à liberdade de expressão e aos princípios constitucionais da legalidade e impessoalidade", diz trecho do agravo de instrumento.

A AGU argumenta ainda que não cabe ao Judiciário intervir em um ato de nomeação do Executivo, uma vez que o presidente da República tem a "privativa competência da direção superior da administração federal."  O órgão ainda defendeu que Camargo atende aos critérios de nomeação do Decreto nº 9.727, de 15 de março de 2019, que incluem "idoneidade moral e reputação ilibada" e  "perfil profissional ou formação acadêmica compatível com o cargo ou a função."

"Primeiramente, não existem registros de qualquer fato que abale a idoneidade moral e a reputação ilibada do Sr. Sérgio Camargo, não havendo, sequer qualquer alegação da parte autora, que aponte para uma condenação judicial ou uma investigação criminal em face do nomeado", cita o texto.

O recurso diz que não há motivos de ação popular contra a nomeação, uma vez que "não é demonstrada qualquer lesividade concreta ao patrimônio público."  E justifica que o autor da ação popular e o juiz que concedeu a liminar presumiram que  o presidente da Fundação Palmares  "adotaria uma postura contrária e violadora das normas constitucionais e legais que orientam as atividades" Fundação Palmares.

"Trata-se de mera presunção, antecipação de comportamento futuro, sem qualquer lastro em elementos concretos que autorizem a conclusão de que o Presidente nomeado para a FCP estaria vinculado ou compelido a conduzir-se de tal ou qual maneira, notadamente em violação às normas constitucionais e legais, a despeito das suas manifestações em redes sociais, em respeito às quais não se faz qualquer juízo de valor nesta instância."

Para reverter a  liminar da 18ª Vara Federal, a AGU argumentou também que havia uma ação popular mais antiga com a 13ª Vara Federal do Maranhão, impetrada no dia 28 de novembro, portanto dois dias antes da ação na Justiça do Ceará. Neste caso, diz o recurso da AGU, a decisão caberia à Justiça do Maranhão, que já havia negado pedido para suspender a nomeação(TRF-5).

Ação popular

A ação popular que culminou na suspensão da nomeção de Sergio Camargo foi proposta pelo  advogado Hélio de Sousa Costa, que alegou  houve desvirtuamento na nomeação. Ele ponderou que as declarações de Camargo nas redes sociais são incompatíveis com o papel do órgão para o qual foi escolhido.

O juiz concordou que houve “excessos” nas postagens de Camargo em redes sociais. Guerra fez um resumo das declarações – que, para ele, contém termos “em frontal ataque as minorias cuja defesa, diga-se, é razão de existir da instituição que por ele é presidida”.

Entre as postagens listadas no processo, Camargo se referiu à ativista americana Angela Davis como “comunista e mocreia assustadora”. Também declarou que nada ter a ver com “a África, seus costumes e religião”. Sugeriu entrega de medalha a “branco que meter um preto militante na cadeia por crime de racismo”. Disse que “é preciso que Mariele morra. Só assim ela deixará de encher o saco”. E, por fim, afirmou que “Se você é africano e acha que o Brasil é racista, a porta da rua é serventia da casa”.

O juiz verificou que, além das frases mencionadas, havia outras publicações com potencial para “ofender justamente o público que deve ser protegido pela Fundação Palmares”. Segundo Guerra, a nomeação de Camargo para o cargo “contraria frontalmente os motivos determinantes para a criação daquela instituição e a põe em sério risco, uma vez que é possível supor que a nova presidência, diante dos pensamentos expostos em redes sociais pelo gestor nomeado, possa atuar em perene rota de colisão com os princípios constitucional da equidade, da valorização do negro e da proteção da cultura afro-brasileira”.

Na decisão, o juiz ressaltou que, se a nomeação não fosse suspensa logo, haveria risco de prejuízo coletivo. Ele também afirmou que, depois da nomeação, foi instalado um “clima de instabilidade institucional”, com “forte reação da comunidade negra”.