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Cultura

Paralisia do governo federal trava quase R$ 500 milhões para a cultura

Mais de 430 projetos com patrocínio garantido estão à espera de homologação pela Secretaria da Cultura; captação em 2020 repetiu o bom resultado de 2019 e chegou a R$ 1,4 bilhão, mas parte desse valor pode ser perdido caso os produtores não consigam a aprovação dos projetos
Palco vazio: risco de 'apagão' cultural Foto: Leo Aversa
Palco vazio: risco de 'apagão' cultural Foto: Leo Aversa

RIO — A promessa de que 2021 seria um ano melhor para o setor cultural, com a esperança de vacinação em massa e a retomada das atividades presenciais, desmanchou após os três primeiros meses do ano. Além da persistência da pandemia , há ainda a lentidão do trâmite de projetos na Lei Federal de Incentivo à Cultura . Hoje, há R$ 477 milhões de patrocínios garantidos aos produtores culturais, mas os recursos não podem ser movimentados porque os projetos aguardam decisões administrativas da Secretaria Especial da Cultura .

Destes, 432 propostas esperam a homologação pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a CNIC, e a publicação no Diário Oficial da União. No primeiro trimestre do ano, o valor captado e executado por iniciativas enquadradas na Lei Rouanet, como a modalidade ficou conhecida, ficou em R$ 58 milhões — quase a metade dos R$ 107 milhões no mesmo período do ano passado.

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Projetos à espera de homologação na LIC Foto: Arte O Globo
Projetos à espera de homologação na LIC Foto: Arte O Globo

Demora na prestação de contas

A pandemia explica só em parte as dificuldades do setor. A Secretaria Especial da Cultura justifica que é preciso debelar o passivo de prestação de contas acumulado ao longo dos anos, que atualmente seria da ordem de pelo menos 10 mil projetos. A Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, vinculada à pasta, reduziu o número de projetos aprovados para a captação ou a homologação dos que já tinham captado, mas não têm permissão para acessar recursos já depositados. Enquanto isso, artistas e produtores se agarram aos repasses emergenciais da Lei Aldir Blanc .

O impasse levou a uma tentativa de judicializar a liberação dos projetos represados pela Secretaria Especial da Cultura com um mandado de segurança impetrado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e várias entidades artísticas, no fim do ano passado, mas que foi indeferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Anteontem, em um novo movimento, o Fórum Nacional dos Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura enviou um ofício solicitando uma reunião virtual com o secretário Especial da Cultura, Mario Frias, para tentar uma solução para a lentidão.

— A demora na liberação destes recursos impacta toda a cadeia produtiva e também os gestores culturais nos estados — ressalta Fabrício Noronha, secretário de Cultura do Espírito Santo e vice-presidente do Fórum. — A economia criativa é uma cadeia de muitos elos que favorece vários outros setores. Se um desses elos rompe causa um impacto em várias frentes. O medo é de um apagão neste sistema nos meses seguintes.

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Demora na contratação de pareceristas

Um dos últimos passos para a liberação dos recursos, após a análise técnica, é a aprovação dos projetos pela CNIC, constituída por representantes de entidades artísticas, da sociedade civil e de membros do governo, em reuniões periódicas realizadas para este fim. Além da redução dos projetos analisados — foram 1.377 em 2020, contra 1.712 em 2019 — , o mandato dos atuais titulares da CNIC, de dois anos, está chegando ao fim (a posse foi em 18 de março de 2019).

Ainda não há previsão se o governo irá prorrogar os mandatos ou fazer uma nova convocação pública. Mas uma fonte ligada à comissão conta que a última reunião só foi possível após uma prorrogação, e que os integrantes precisaram trabalhar mais dias além dos três usuais para analisar todos os projetos enviados. A demora na contratação de pareceristas nas entidades vinculadas no ano passado, segundo esta fonte, também pode ter piorado o gargalo de projetos.

Cristiane Olivieri, advogada especializada no mercado de cultura, afirma que há vários níveis de problema ao longo do processo.

— Um é do produtor com um projeto a ser aprovado ou prorrogado para captar, mas não consegue a sua publicação. Não adianta ter feito todo o processo para conseguir aquele patrocínio, porque sem estar publicado essa renúncia não vai sair. — explica Cristiane. — Outro é quem já captou e só precisa da validação do parecer técnico pela CNIC para movimentar esse dinheiro. Antes, as reuniões chegavam a ter mais de mil projetos, especialmente em época de maior demanda, e hoje ficam em 100, 150 apenas. Isso prejudica toda a cadeia, porque o dinheiro do setor, ao contrário de outras áreas, se espalha muito rápido. Os orçamentos são quase que inteiros para prestação de serviços.

Boa captação pode ser perdida

A advogada ressalta que o desperdício de tempo e recursos no primeiro semestre pode comprometer todo o bom resultado dos esforços de captação do ano passado:

— De forma surpreendente, a captação em 2020 repetiu o bom resultado de 2019, e chegou a R$ 1,4 bilhão. Mas parte desse valor pode ser perdido caso os produtores não consigam a aprovação dos projetos. Muita gente que tem até dinheiro em conta, e que esperava que a situação já estivesse resolvida agora, não tem mais de onde tirar recursos. No caso de instituições, que têm despesas fixas, a situação se agrava sem a publicação dos planos anuais. Você consegue até adiar algum pagamento por um mês ou dois, mas como negociar com um fornecedor quando se chega em abril sem nenhuma previsão de quando terá dinheiro em caixa?

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Sob condição de anonimato, temendo que suas iniciativas fiquem ainda mais tempo na fila, um produtor aguarda a homologação de um projeto de R$ 300 mil, já depositados na conta captação, para poder movimentá-los:

— É uma situação difícil, porque é um projeto que envolve um trabalho contínuo com jovens de baixa renda,e a demora na liberação compromete tudo o que já foi feito. Peguei um empréstimo subsidiado para cultura e consegui reverter alguns projetos para o digital, para a Lei Aldir Blanc, e por isso ainda estou conseguindo manter a produtora. Mas e quem não tem essa possibilidade, ou os trabalhadores que dependem da aprovação dos projetos para serem contratados? Muita gente está tentando a liberação com ações coletivas ou individuais na justiça, mas o proponente sempre fica com medo de ficar visado dentro da Secretaria no futuro.

Procurada desde terça-feira, a Secretaria Especial da Cultura não respondeu aos questionamentos até o fechamento desta reportagem.