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Cultura

Pastor Henrique Vieira: 'Somos capazes de aprender com a dor e produzir dias melhores'

Religioso conduz cultos via YouTube aos domingos, defende que pratiquemos o amor como decisão ética diante da vida e diz que o divino não tem nada a ver com o coronavírus: ‘Não acredito num Deus que provoque sofrimento ou morte para nos ensinar algo’
Pator Henrique Vieira promove cultos online aos domingos via YouTube Foto: Chico Cerchiaro / Divulgação
Pator Henrique Vieira promove cultos online aos domingos via YouTube Foto: Chico Cerchiaro / Divulgação

Pouco antes de o coronavírus tomar o mundo, o pastor, ator e palhaço, Henrique Vieira, de 33 anos, encenava a peça “O amor como revolução”. Adaptação de seu livro homônimo, lançado pela Objetiva em 2019, a montagem fala sobre como o afeto pode tornar o mundo mais justo. A partir da história pessoal de Henrique que, aos 16 anos, teve uma inflamação no nervo ótico que o fez perder parte da visão naquele período, o texto escancara a fragilidade humana e o que o autor chama de “desamparo universal”.

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— Vivemos a partir de uma margem significativa de desamparo, finitude e não domínio sobre determinadas coisas — diz o pastor, progressista e militante dos direitos humanos. — Aí entra o amor. Se a vida tem esse desamparo, a melhor resposta é dar a ela um sentido solidário.

Nesta conversa, ele, que conduz cultos online da Igreja Batista do Caminho no YouTube e Facebook, domingos às 17h, mostra ainda mais como essa mensagem soa atual em tempos de Covid-19. De sua casa, em Laranjeiras, Zona Sul o Rio, onde vive a quarentena ao lado da companheira, a dentista e atriz Caroline, e da filha Maria, de dois anos, ele conversou com OGLOBO.

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Você representou Jesus no último desfile da Mangueira, quando o enredo imaginava a volta dele a esse mundo cheio de intolerância e violência. Nem pensávamos na pandemia… Qual seria a mensagem de Cristo nesse momento?

A mesma de antes e de dois mil anos atrás: na dúvida, ama. O amor que Jesus viveu não era alienante, sentimental, apenas uma emoção. Um sentimento que vai e vem sem a gente ter controle sobre o que está sentindo. É um amor como uma decisão ética diante da vida. "Olhe para o próximo e respeite, promove o bem, se compadece daquele que está sofrendo, defende o direito de quem é vulnerável, estende a mão para quem está caído, divide o pão com quem não tem, acolhe aquele que está abandonado, cuida da natureza porque nós somos parte dela". É um amor que gera uma atitude coberta de cuidado com tudo que existe.

Quais é o maior desafio mundial diante da pandemia?

Justiça social e ecológica. Mais do que nunca deve ser inaceitável um mundo em que criança passa fome, famílias não têm água potável, esgoto tratado, casa para se abrigar, um pedaço de terra para plantar, em que refugiados morrem nas fronteiras. Tudo isso revela nossa tragédia civilizacional. Não estou falando de ideologia, mas de superação da miséria, da pobreza e da fome. Muita gente está lembrando que isso existe, mas já existia antes. Depois que o vírus passar, a fome continuará matando se a gente não produzir justiça social. A mãe Terra está gritando contra a nossa ganância. Se continuarmos no ritmo que estávamos de produção e consumo, o que está por vir será mais fatal ainda. Aquecimento global, perda de cobertura vegetal, alterações climáticas, desaparecimento de várias espécies… A ciência nos alerta que vamos inviabilizar a espécie humana em pouco tempo. Parece que a gente não aprende antes de passar pela dor. Só que ela pode ser fatal e sem possibilidade de superação. O ser humano precisa retomar o casamento com a Terra, porque esse divórcio está acabando com a gente.

Estamos diante de uma oportunidade de transformação do mundo que criamos?

Não acho que tragédias tenham um sentido em si. Deus não está provocando esse negócio. Não acredito num Deus que provoque sofrimento ou morte para nos ensinar algo. O sofrimento humano é causado pela ordem da própria vida. Sabe a música do Toquinho "A gente mal nasce, começa a morrer"? A vida tem uma margem de sofrimento natural, aleatória, basta estar vivo para sentir. E tem o sofrimento causado pela maldade humana, da injustiça, violência, preconceito, exploração. Nenhum dos dois casos é provocado por Deus. É uma oportunidade de transformação? Sempre é. Mas não porque a pandemia tenha sido enviada pelo divino para nos ensinar, e sim porque nós, seres humanos, somos capazes de dar sentido, de aprender com a dor, criar esperança a partir do desespero, produzir dias melhores. Diante dela, podemos tomar decisões éticas de amar, cuidar, vencer preconceitos, valorizar coisas simples, de dar, quando puder, abraços verdadeiros. Aí está a oportunidade: o abraço vai ser mais verdadeiro, a conversa, mais sincera, o olhar, mais sensível, a vida, mais simples e solidária.

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Estaremos prontos para uma nova sociedade?

Sou um realista esperançoso, como dizia Ariano Suassuna. Trazendo de novo para o evangelho: “Conheço a cruz, mas sei que o nosso destino é a ressurreição”. Isso é uma metáfora da vida. Preciso acreditar, ter esperança é uma exigência ética. Não posso achar que a Humanidade vai ser para sempre mesquinha e violenta. Preciso acreditar na bondade, na nossa capacidade de melhorar a partir da dor. O contrário do desespero é a esperança, e isso tem a ver com a sociedade brasileira. Independente da pandemia, quando as pessoas começam a perder a esperança, passam a apostar no ódio, no medo, nas armas. Como não acredito que a Humanidade pode ser boa, bota uma arma na mão e cada um se protege. A pessoas não conseguem projetar uma sociedade melhor, querem só se defender e escolhem matar ou morrer. Terrível.

A mensagem de Jesus vem sendo desvirtuada em nome de um projeto de poder, que manipula fiéis. Políticos e pastores usam o nome de Cristo para pregar a intolerância. Como vê essa questão?

Isso foi o que matou Jesus dois mil anos atrás. Ele foi executado pelo Estado a pedido de lideranças religiosas, foi vítima do fanatismo religioso. São pessoas que, em nome de Jesus, o matariam de novo. Isso não é fé genuína, mas busca de poder, privilégio e dinheiro do que chamo de coronéis, megaempresários da fé. Gente que anda de jatinho com dinheiro do fiel, que mal tem o que comer. Um tipo de discurso que colocaria Jesus num paredão de fuzilamento, já que hoje não tem mais cruz.

Muita gente parece confundir conservadorismo com a mensagem de Cristo, que não era conservadora necessariamente. Ele nunca falou contra gays, pelo contrário, disse que os humanos são todos irmãos, que devemos perdoar uns aos outros. Na mensagem dele, onde estaria a raiz dessa intolerância?

Não há. Por isso, defendo que a Bíblia seja lida comunitariamente pelo povo, olhando para as atitude de Jesus de Nazaré que, para nós, é o filho de Deus. Jesus só conservou o que passava pelo teste do amor. Com o que não passava, ele rompeu. Levaram uma mulher flagrada em adultério para ser apedrejada, e Jesus a protegeu. Disseram que por determinadas regiões ele não poderia passar porque só havia incrédulos, e ele andou por lá tranquilamente. Disseram que era olho por olho e dente por dente, e ele mandou perdoar sem limites. Disseram que era para odiar o inimigo, e Jesus ensinou a amar e a orar por quem nos persegue. Disseram que os pobres eram amaldiçoados, e ele falou que pertencem ao reino dos céus. Disseram que o único lugar da adoração era o templo, e Jesus disse que é possível adorar em qualquer lugar, porque o importante é o coração.

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Ele muito mais rompeu do que conservou...

Sim, e não é uma ruptura sem causa, rebelde. E, sim, fiel à centralidade do amor. Ele buscou o que há de mais essencial e bonito no ser humano, mostrou que não há nenhuma regra acima dessa intuição amorosa que habita dentro da gente. Quando pessoas jogam pedras num terreiro ameaçando uma mãe de santo em nome de Jesus, acha que ele aprovaria isso ou protegeria essa mulher e seu direito de crer? A mesma coisa se aplica quando uma travesti é violentada na rua. Jesus estaria batendo e cuspindo nela ou defendendo seu direito de existir sem medo? É tão óbvio! Outra coisa: Jesus não morreu quentinho numa cama, de boa, velhinho. Ele foi preso e torturado. E, em nome de Jesus, hoje, se elogia torturador. Talvez essa seja a imagem que mais expresse essa contradição entre o que se faz em nome de Jesus com a vida dele. Como elogiar um torturador em nome de quem foi torturado?


Voltando à confusão que se faz entre conservadorismo e a mensagem de Jesus, isso acaba criando uma imagem negativa de Cristo por quem é a favor da diversidade, não é? As igrejas vão criando esse abismo...

Sim, essa mensagem mais repele do que acolhe. Há um discurso que cresce hoje no Brasil, mas no vazio, nessa narrativa do ódio. Mas é importante não generalizar. O campo evangélico não é homogêneo. Muitas vezes, essas igrejas são espaços de acolhimento de pessoas. Numa sociadede tão injusta como a nossa, isso tem que ser valorizado. Há pessoas que não são valorizadas por ninguém, chegam lá e há gente que se preocupa e ora por elas.

O ser humano costuma querer muito algo sempre que não pode. Agora, com a comunicação comprometida, gente que não se falava muito passou a se procurar diariamente. É preciso trabalhar a aceitação do que não podemos controlar? Sentir saudade é importante?

A verdadeira comunhão depende de uma saudade ou solidão. Se a gente não aprende a gostar da própria companhia, a ter amor próprio, segurança interior, a gente se joga nas relações humanas querendo que as pessoas sejam a solução das nossas questões. Isso gera frustração e relacionamentos superficiais. Tenho tanta rejeição de mim que quero sugar tudo do outro. Isso geralmente dá errado. Ninguém pode ser a solução para mim, isso é injusto com qualquer pessoa que conviva comigo. Sabe a música do Criolo "os bares estão cheios de almas tão vazias"? Mesmo quando a gente puder se aglomerar novamente, se não tivermos amor próprio, seremos aglomerados solitários. Mesmo em ambientes festivos, podemos nos sentir vazios e abandonados, porque nossa comunhão é falsa, superficial, acelerada demais. Por isso, uma solidão saudável prepara nosso coração para amar de forma madura. Se eu consigo me sustentar minimamente, consigo me abrir com mais sabedoria. A saudade melhora o encontro depois.

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Você é filiado ao PSOL. Não tem receio de que seu discurso, tão importante, fique trancado dentro da bolha da esquerda?

Meu referencial prioritário é o evangelho. Onde aprendi sobre amor ao próximo, justiça social, defesa da causa do pobre. Não foi em Marx. Defender justiça social e o respeito à diversidade não é ser de esquerda, é ser cristão. Tenho simpatia pelas narrativas de esquerda, mas nunca de maneira acrítica. Não idolatro a esquerda. É o meu referencial, mas não faço de nenhuma ideologia um espaço absoluto sem questionamento. Mas não quero ficar preso na bolha esquerdista. Peço às pessoas que tendem a me bloquear previamente a possibilidade do diálogo, um apelo ao bom senso. Não defender tortura, não elogiar ditadura, ter compromisso com liberdade de expressão, de imprensa, com o direito de ir e vir e de votar não é ser de esquerda, mas um compromisso com a democracia. Não faço um apelo para as pessoas se tornarem marxistas, mas para a gente conversar e respeitar nossas diferenças, fazer um pacto de defesa da democracia nesse país. Tenho um espírito público e desejo conversar com quem é diferente de mim. É preciso bom senso. Porque hoje há gente que comemora a morte e desrespeita orientações da Organização Mundial da Saúde para preservar a nossa vida.