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Cultura

Paul McCartney não esconde jeitão amador em álbum que gravou 100% sozinho na quarentena

Beatle lança ‘McCartney III’, fruto de isolamento social e liberdade musical
O beatle Paul McCartney Foto: Mary McCartney / Divulgação
O beatle Paul McCartney Foto: Mary McCartney / Divulgação

Não existe muito mistério sobre “McCartney III”, o novo álbum solo que o beatle Paul McCartney lança nesta sexta-feira . É o terceiro de uma sequência de discos caseiros, autoproduzidos e nos quais tocou todos os instrumentos, iniciada em 1970 com “McCartney” e seguida 10 anos depois por “McCartney II”. Se o primeiro LP marcava sua desacoplagem dos Beatles e o segundo, a dissolução da banda Wings, este terceiro não delimita nenhuma nova fase (embora há quem acredite que ele vá assinalar o fim de sua carreira fonográfica). É apenas Paul brincando de fazer música no estúdio que tem em sua propriedade em Sussex, na Inglaterra.

Mas, mesmo que de brincadeira, é um disco de Paul McCartney, um dos maiores artesãos da história da música pop. Um trabalho tão desigual como “McCartney” (cheio de exercícios na baixa fidelidade que, no meio de alguma bobagem, tinha um “Maybe I’m amazed”) ou o “II” (de pirações na eletrônica portátil da qual saiu uma gema pop como “Comin up”), mas com a vantagem de resumir toda a experiência de um artista aos 78 anos de idade (mais de 60 deles na estrada da vida). Enfadado, como muitos, pela rotina de isolamento imposta pela Covid-19, Paul encontrou o tempo e a introspecção para se libertar no estúdio como há muito não fazia.

Cercado de equipamento vintage — um baixo acústico que foi tocado por Bill Black, da banda de Elvis Presley; um mellotron de Abbey Road; e o seu velho baixo Hofner em formato de violino —, o beatle empreendeu uma jornada por suas memórias e as foi transformando em canções, sem a obrigação de se ater a formatos rígidos ou a buscar a polidez do estúdio. “Em nenhum ponto”, disse ele em entrevista recente ao “New York Times”, “eu pensei: estou fazendo um álbum. Eu teria que ser sério. Foi mais algo como: você está em quarentena, pode fazer o que diabos quiser!”

Sem esconder um jeitão amador (que fica mais evidente no desempenho de Paul como baterista), “III” reveste com uma certa sonoridade de 2020, aberta e ampla, um tipo de canção pop que ele domina como ninguém: elaborada (de formas mais ou menos sutis) e muito melódica. Nada diferente das que veio gravando desde o seu primeiro álbum solo até o mais recente, o igualmente irregular “Egypt Station” (2018). Só que, no clima lúdico do novo disco, o músico não fez mais questão de esconder que tem a voz de um homem de 78 anos. Mas ela, ironicamente, soa bem mais jovial e energética do que em muitos momentos de sua carreira pós-Beatles.

É na bateria que Paul McCartney deixa mais claro o jeitão amador de 'McCartney III' Foto: Mary McCartney / Divulgação
É na bateria que Paul McCartney deixa mais claro o jeitão amador de 'McCartney III' Foto: Mary McCartney / Divulgação

A impressão de que se está diante de algo diferente vem logo na faixa de abertura, “Long tailed winter bird”, na qual Paul se comporta como quem estivesse enamorado de uma frase de violão e decidisse estendê-la por alguns minutos só para poder curti-la melhor. Em seguida, vem “Find my way”, canção alegre, lapidar, com espírito beatle e estripulias sonoras, que se liga em muito a outras duas do álbum: “Seize the day”, uma dessas memoráveis silly love songs , que prega o direito que as pessoas têm de serem otimistas e legais; e “Kiss of Venus”, uma bela peça à base de violão e cravo, com o romantismo delicado encontrado em uma “Yesterday”.

Detalhe da capa do álbum "McCartney III", de Paul McCartney Foto: Reprodução
Detalhe da capa do álbum "McCartney III", de Paul McCartney Foto: Reprodução

Um pouco de bile, porém, escapa em “Pretty boys”, canção folk com observações de Paul sobre o mundo da moda, focadas nos modelos masculinos (que seriam como “uma fileira de bicicletas de aluguel, objetos de desejo... você pode olhar, mas é melhor não tocar”). Com uma pulsação guitarrística definitivamente glam, “Lavatory Lil” serve para o cantor desancar, sem mais palavras, um fictício personagem feminino que lhe despertou antipatia: “Ela se comporta como uma starlet/ mas ela parece uma prostituta/ lentamente, ela está indo ladeira abaixo”). E, do glam, Paul pula então ao mais descarado stoner rock em “Slidin’”, que soa quase como uma homenagem ao grupo Queens of The Stone Age, e que melhor representa, em sua letra, a proposta do disco: “Sei que deve haver outras maneiras de me sentir livre/ mas é isso que eu quero fazer/ quem eu quero ser.”

Momento mágico

Sendo Paul McCartney quem é, mesmo com toda a sua despretensão ele acabaria levando “III” a algum momento mágico, e esse é “Deep deep feeling”: canção que é pura construção de climas, empilhando camadas de piano, sintetizadores, bateria esparsa e jogos de vozes, para expressar musicalmente o que é amar alguém tanto que o coração ameaça explodir. Ao adentrar um território dominado pelos mais intrépidos e angustiados jovens talentos do r&b, o velho Macca prova que não chegou à toa onde chegou: sua compreensão do pop é, de fato, universal e atemporal.