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Cultura

Pesquisadores criam banco de dados de sonhos durante a pandemia do coronavírus

Estudiosos de diversas áreas estão tentando entender nossa atividade onírica após o surto de Covid-19
Sonhos se tornaram mais vívidos e intensos na quarentena Foto: Arte André Melo
Sonhos se tornaram mais vívidos e intensos na quarentena Foto: Arte André Melo

RIO — Uma gaveta em um sonho nunca é uma gaveta vazia, dizia o filósofo Gaston Bachelard. Mas o que se esconde em nossos compartimentos oníricos durante uma pandemia? Que tipo de imagem e história invade o sono quando um inimigo invisível nos ameaça nas ruas?

Em diferentes partes do planeta, pesquisadores trabalham para coletar relatos sobre o que ocorre, hoje, quando as pessoas adormecem. Os sonhos parecem estar mais vívidos e intensos do que o normal. Sensação de enclausuramento, obsessão por limpeza, perambulações por cidades desertas, dificuldade de voltar para casa, carros desgovernados e perseguição de animais são recorrentes.

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Este momento confuso para nosso inconsciente despertou a curiosidade de filósofos, psicólogos, historiadores, sociólogos, artistas e estudiosos de diversas áreas. Começaram a surgir, assim, os bancos de dados com sonhos da Covid-19. Com metodologias diferentes, eles tentam descobrir — e preservar — o conteúdo de nossas “gavetas” diante do surto de coronavírus.

— Há segredos que só a linguagem onírica pode trazer — observa Paulo Endo, psicanalista e professor da USP. — Ela mostra o que o sujeito tem a dizer para além do que poderia dizer racionalmente. Em um mundo que desafia a lógica racional, como o Brasil de hoje, por exemplo, só os sonhos podem enfrentar o que acontece na realidade.

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Em parceria com os psicanalistas Denise Mamede e Edson Luiz André de Souza, Endo está tocando o “Inventário de sonhos”, projeto que coleta memórias sonhadas de voluntários. Hoje, o grupo tem mais de uma centena de relatos. Ao fim, vão trabalhar psicanaliticamente o material para entender o que ele diz sobre as condições em que estamos vivendo.

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Os sonhos, afinal, estão inscritos na História. Em seu livro “O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: Ensaios de antropologia medieval” (Editora Vozes), o historiador francês Jean-Claude Schmitt pesquisou o que se sonhava na Idade Média. Muitos relatos ainda ecoam nos dias de hoje, principalmente os escritos por monges em seus confinamentos em monastérios. Reclusos, manifestavam dificuldade e crenças em meio aos exercícios de introspecção.

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— Os sonhos do passado são para os historiadores de hoje o que os sonhos de hoje serão para os pesquisadores de amanhã: um documento insubstituível sobre os desejos de evasão e a vida em conjunto em tempos de dificuldades — avalia Schmitt, que dá aulas na Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais de Paris.

Presidente da Associação Brasileira do Sono, a neurologista Andrea Bacelar confirma que um sentimento já se manifesta com força quando fechamos os olhos durante a pandemia: o medo. De ficar doente, de perder alguém próximo, de ficar sem emprego, de não ter dinheiro.

— Mais pessoas se queixam de um sono fragmentado e uma atividade onírica desagradável — ela diz. — Para muitos, isso reflete o momento de intranquilidade atual. Mas não há uma relação de causa e efeito. Não é porque estou pensando no vírus que ele vai aparecer no sono.

O lugar das preocupações

Complexos e enigmáticos por natureza, os sonhos inspiram bancos com abordagens e objetivos bem diferentes. Muitos têm como modelo o livro seminal da berlinense Charlotte Beradt, “Sonhos no Terceiro Reich”, que documentou o material onírico de seus conterrâneos entre 1933 e 1939, período que vai da ascensão de Hitler até o início da Segunda Guerra. É o caso do projeto “Sonhos da quarentena”, da artista visual Anelise De Carli. Com uma abordagem antropológica, ela mapeia “constelações simbólicas” que remetem ao imaginário visual da nossa época. E já reúne 400 relatos de sonhos de vários países.

Há propostas mais brutas. No ar desde o início do mês, o inventário do jornalista Eduardo Nasi, “Sonhos do coronavírus”, torna públicos os relatos que chegam, com um objetivo bem imediato.

— A ideia é que qualquer pessoa faça o que quiser com eles — explica. — Acho que o momento exige que possamos ver que não estamos tendo sonhos esquisitos sozinhos.

O trabalho com esse tipo de material, porém, tem peculiaridades e limites. Para o sociólogo francês Bernard Lahire, professor da Escola Superior de Lyon, interpretar sonhos de anônimos pode render uma “visão superficial”. Pensando nisso, o autor do livro “A interpretação sociológica dos sonhos” começou um banco de dados que associa os relatos a informações biográficas.

— O sonho é uma comunicação de si para si, repleta de implícitos, atalhos, pressupostos. E é o lugar de todas as preocupações. Nossos problemas são como “bacias de atração” para o espaço mental.

Memórias de sonhos relatadas à reportagem nesta semana

- “Logo no início eu sonhei que tinha que ir na rua e encostavam em mim. Nunca fui de sonhar muito, mas tenho sonhado com bastante frequência  e sempre acordo com a certeza de que foi motivado pela inquietação da pandemia”.

- “Eu sempre tenho sonhos longos e épicos de   fim de mundo, sou acostumada, mas sinto que eles estão mais detalhados, com animais tentando me morder. E MUITOS monstros”.

- “Eu tive sonhos muito psicodélicos nos últimos três dias. No último eu fechava um negócio em um escritório chique, mas quando levantava a cabeça me via num mundo onde todos eram pinguins. E possivelmente eu era um também” .

- “Fomos a um restaurante e pedimos um jantar que não vinha. Acabamos comendo outro prato. Ao sair do restaurante, não sabia mais voltar para casa e tive que pedir ajuda do GPS”.