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Cultura

Poeta não binário que participa Flip dedica versos a jovens negros assassinados pela polícia e faz sucesso no YouTube

Danez Smith lança o livro de poemas 'Não diga que estamos mortos', no qual reflete sobre o que significa ter um corpo ameaçado pela violência
Danez Smith, poeta e performer: "É cansativo ser o negro mágico que conserta o racismo dos outros" Foto: David Hong / Divulgação
Danez Smith, poeta e performer: "É cansativo ser o negro mágico que conserta o racismo dos outros" Foto: David Hong / Divulgação

SÃO PAULO — Em "verão, algum lugar", poema que abre a antologia "Não diga que estamos mortos", Danez Smith menciona alguns nomes, como Trayvon e Sean, que bem poderiam ser Ágatha ou João Pedro . O poema imagina o céu das crianças e dos adolescentes negros mortos pela polícia, um paraíso "lá longe", onde sempre faz sol e "moleques da cor / dos feijões brincam de bola". Os versos foram tomando forma entre 2014 e 2016, quando o movimento Black Lives Matter (Vidas pretas importam) começava a conquistar a opinião e o espaço público nos Estados Unidos — o assassinato de Trayvon, de 17 anos, por policial branco da Flórida, ocorreu em 2012 e provocou uma explosão de protestos antirracistas. Lançado em 2017, "Não diga que estamos mortos" ganhou um punhado de prêmios e foi finalista do prestigioso National Book Award.

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De seu apartamento em Mineápolis, no Meio-Oeste americano, Smith, de 31 anos, conversou com o GLOBO, por Zoom, dez dias após o assassinato de José Alberto Freitas, um homem negro , por dois seguranças (um deles policial militar) no supermercado Carrefour, em Porto Alegre, na véspera do Dia da Consciência Negra. Smith não sabia da notícia, mas não ignora a gravidade do racismo e da violência policial no Brasil, que faz com que seus versos soem tão urgentes na tradução de André Capilé quanto no original.

— O racismo não conhece fronteiras. Onde quer que permaneçam as estruturas da branquitude e o espectro do colonialismo, negros lutam para viver e não ser antagonizados por um Estado que mente estar ali para nos proteger e servir — diz Smith, que, amanhã, às 18h, participa da mesa "Vocigrafias insurgentes", com a artista visual Jota Mombaça, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) que, este ano, é virtual .

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Fã de Gal Costa (até se esforça para pronunciar "Aquarela do Brasil"), Smith comemora a edição brasileira de "Não diga que estamos mortos", a primeira tradução de um livro seu. Antes, seus poemas haviam aparecido esporadicamente línguas como o norueguês, o espanhol e o romeno.

— Mais cedo eu estava chorando no carro, pensando na edição brasileira — confessa, rindo. — Me identifico com a negritude da cultura brasileira. Espero que esses poemas um dia sejam irrelevantes, mas, hoje, quero que eles sejam úteis aos espíritos dos que lutam pelos negros no Brasil.

‘They’, ‘ile’, ‘elx’

Smith é uma pessoa não binária , ou seja, não se identifica nem com o gênero masculino, nem com o feminino. Em inglês, prefere pronomes neutros, como “they”, que significa “eles” ou "elas", mas foi apropriado pela comunidade LGBT+ para se referira quem não é nem homem, nem mulher. Em português, recomendase pronomes como "ile" ou "elx". Há alguns anos, Smith recebeu um diagnóstico positivo para HIV.

Os poemas de "Não diga que estamos mortos" falam de negritude e sexualidade. O livro é a junção de dois manuscritos nos quais Smith trabalhava separadamente. Um deles retratava corpos negros ameaçados pela violência policial. No outro, apareciam poemas sobre sexo, aplicativos de paquera e aids, como "uma nota sobre vaselina" e "medo de agulhas". O editor Jeff Shotts sugeriu juntar os dois num só. Smith suspeitou que o editor estivesse louco, mas depois reconheceu que "colocar obsessões diferentes para conversar" resultou numa linguagem mais poética.

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— Quanto mais eu mergulhava nos manuscritos, mais percebia que a reflexão sobre mortalidade perpassava os dois: o que significa viver num corpo que é ameaçado pelo Estado e também por um vírus que o invadiu — explica. — Digo aos meus alunos: misturem suas obsessões. Se você anda pensando em baleias, justiça para mulheres e no futuro da agricultura, deixe esses pensamentos passarem um tempo juntos e veja o que saí daí. Atualmente, meu cérebro está obcecado por estradas e carros. E o que acontece dentro dos carros.

Como um sermão no culto

Smith é poeta e performer. Quando estava no ensino médio, uma professora que gostava do "teatro do oprimido", de Augusto Boal, incentivou sua turma a escrever monólogos confessionais. No YouTube, os vídeos nos quais Smith declama seus versos têm centenas de milhares de visualizações. Um dos mais acessados é "dear white America" (cara América branca), no qual esbraveja: "eu tentei, gente branca. tentei, branquelos, mas passaram o funeral do meu mano fazendo planos prum cafezinho, falando alto de mais ao lado de seus ossos". A oratória lembra a de um rapper ou um pastor pentecostal. Apesar de querer que seus versos energizem as pessoas, como um sermão de domingo, Smith confessa ter pouca paciência para pregar para gente branca.

— É cansativo ser o negro mágico que conserta o racismo dos outros. Se você consegue conversar sobre raça com gente branca, vai nessa, precisamos de você! Se não quiser educar um branco hoje, tudo bem! É 2020! O antirracismo não deveria ser novidade para ninguém.

Capa de "Não diga que estamos mortos", livro de poemas de Danez Smith Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Não diga que estamos mortos", livro de poemas de Danez Smith Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"Não diga que estamos mortos"

Autor: Danez Smith. Tradução: André Capilé. Editora: Bazar do Tempo. Paginas: 224. Preço: R$ 55.