Cultura

‘Precisamos perguntar por que Hitler fascinou meio mundo’, questiona Javier Cercas

Autor lança “O rei das sombras”, sobre seu tio-avô que lutou no exército de Franco
O escritor Javier Cercas Foto: LEONARDO CENDAMO / Leemage
O escritor Javier Cercas Foto: LEONARDO CENDAMO / Leemage

RIO — Quando criança, as visitas de Javier Cercas à casa de sua avó eram assombradas pelo retrato de um soldado muito jovem, quase um menino, na sala de jantar. Era seu tio-avô Manuel Mena, que, em 1936, aos 17 anos, alistou-se no exército fascista de Francisco Franco para lutar contra os republicanos na guerra civil espanhola. Mena morreu em 1939 e se converteu em herói familiar. Cercas sempre soube que escreveria sobre ele — um de seus romances sem ficção, que revisitam a História da Espanha.

Em “O rei das sombras”, o autor se esforça para humanizar o rapaz do retrato e pergunta: “será possível ser um jovem nobre e puro e ao mesmo tempo lutar por uma causa errada?” Nesta entrevista ao GLOBO, ele afirma que a literatura pode ensinar aos homens o que eles se recusam a aprender com a História.

Você diz que “O rei das sombras” foi o primeiro livro que quis escrever. Por quê?

Porque nele formulo a primeira pergunta complexa que me fiz, ainda adolescente. Escrever um romance é propor uma pergunta complexa da maneira mais complexa possível. E não responder a ela. Ou responder a ela de maneira ambígua, irônica. A resposta é a própria pergunta. Neste caso, a pergunta se refere ao “herói” de minha família. Simplificada ao máximo, a pergunta é: vale a pena morrer pelas coisas em que cremos ainda que elas sejam equivocadas ou que a História as declare equivocadas?

O populismo de direita cresce. Os anos 1930 se repetem?

Sim, porque esquecemos como os anos 1930 realmente foram. Esquecemos que o fascismo era um movimento idealista, antissistema, radical, novo, com líderes carismáticos e soluções mágicas. O populismo nacionalista atual não é o fascismo, mas uma máscara pós-moderna dele. A crise de 1929 gerou um terremoto que consolidou os fascismos. A crise de 2008 gerou outro terremoto, que criou os populismos nacionalistas de Trump e Bolsonaro, do Brexit e do separatismo catalão. Não aprendemos nada com a História. Talvez se deva dar razão a Bernard Shaw, que escreveu: “Aprendemos com a experiência que os homens nunca aprendem com a experiência”.

E com a literatura, aprendemos alguma coisa?

Quando eu era jovem e queria ser um escritor pós-moderno, pensava que a literatura não era útil, mas só um jogo sofisticado e apartado da realidade. Detestava a literatura política, que me parecia mera propaganda. Hoje sou um escritor pós-pós-moderno e penso que a literatura é um jogo e é útil quando se propõe a entender o que somos, no passado e no presente. Entender significa fornecer os instrumentos necessários para não repetirmos os mesmos erros. Não basta dizer que Hitler era um monstro. Precisamos perguntar por que esse maluco conseguiu fascinar meio mundo. Se houvesse um gênio — um Shakespeare, um Cervantes, um Dostoiévski — capaz de responder a essa pergunta (ou de formulá-la de modo mais complexo ), teríamos um instrumento útil para impedir que Hitler se repita. Se há uma bomba em casa, não basta gritar “bomba!”, preciso entender como ela funciona para desativá-la. A literatura ajuda a entender mecanismos e fornece instrumentos para desativá-los.

Como fazer isso em tempos de ascensão populista e crise da democracia?

Falando a verdade. A maioria prefere a mentira, que é agradável, fácil de explicar e digerir, enquanto a verdade costuma ser desagradável, incômoda e difícil de explicar. Quem diz a verdade vira estraga-prazeres. Escritores e jornalistas são mais necessários do que nunca, mas não podem só contar a verdade, precisam desmontar as mentiras com sabor de verdade. A verdade cria pessoas livres. A mentira cria escravos.

Você escreve a partir do que chama de “pontos cegos” e elogia a ambiguidade de “Dom Quixote” e “Moby Dick”. Um dos romances mais ambíguos da literatura brasileira é “Dom Casmurro”. Você o conhece?

De Machado de Assis, li “Brás Cubas”, “Quincas Borba”, contos e poemas. Não li “Dom Casmurro”. Pena. Para mim, não há grande literatura sem ambiguidade, porque não há grande literatura sem colaboração do leitor. Ambiguidade é espaço que o autor cria para que o leitor termine o livro que ele começou.