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Cultura

Premiado na França, romance de David Diop resgata a memória de soldados africanos na Primeira Guerra Mundial

O narrador de 'Irmão de alma' é um 'tirailleur', um senegalês que lutou nas trincheiras francesas; autor é bisneto de combatente e participa da programação paralela da Flip
Soldados africanos e franceses nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, em 1917 Foto: Pascal Segrette / Dist. RMN-Grand Palais
Soldados africanos e franceses nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, em 1917 Foto: Pascal Segrette / Dist. RMN-Grand Palais

SÃO PAULO — O bisavô do escritor franco-senegalês David Diop era um tirailleur , um dos mais de 180 mil soldados africanos que defenderam a bandeira tricolor contra os alemães na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Atingido por gás mostarda, uma das armas químicas que estrearam na "Grande Guerra", ele nunca abriu a boca sobre o que lhe acontecera no campo de batalha. O silêncio do bisavô sempre perturbou Diop. Nascido em Paris, em 1966, e criado no Senegal, ele leu tudo o que pôde sobre os tirailleurs e foi atrás de cartas que eles talvez tivessem deixado. Não achou quase nada, apenas uns poucos relatos burocráticos.

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Foi aí que lhe veio a ideia de escrever "Irmão de alma", romance lançado no Brasil pela Nós, que vendeu mais de 180 mil cópias na França e foi finalista do prestigioso Prêmio Goncourt — e venceu o Goucourt des Lycéens, cujos jurados são os alunos dos liceus. Numa troca de e-mails com o GLOBO, Diop, que participará da programação paralela da Flip, arriscou que os estudantes talvez se identifiquem com narrador Alfa Ndiaye, tirailleur recém-saído da adolescência. Já os leitores mais velhos, diz ele, mostram-lhe fotos de seus avós e bisavós que forjaram laços de camaradagem com soldados africanos nos campos de batalha.

'Devorador de almas'

Enquanto caçava cartas talvez perdidas de tirailleurs, Diop percebeu que as representações dos soldados africanos que circulavam na França no início do século XX serviram para legitimar a colonização com a velha desculpa da "missão civilizatória".

— O general Charles Mangin chegou a dizer que os soldados da África Ocidental eram corajosos, mas "crianções" — conta. — Paradoxalmente, o Exército francês usou a representação da "selvageria africana" como arma de guerra para aterrorizar os alemães. O uniforme dos tirailleurs vinha com um facão. Em “Irmão de alma”, eu quis jogar com esses estereótipos.

O escritor franco-senegalês David Diop, autor de "Irmão de alma", vencedor do International Booker Prize Foto: Alice Joulot / Reprodução
O escritor franco-senegalês David Diop, autor de "Irmão de alma", vencedor do International Booker Prize Foto: Alice Joulot / Reprodução

Em vez de uma carta em que um tirailleur descrevesse o dia a dia nas trincheiras, Diop apostou num romance de guerra psicológico, narrado por Alfa Ndiaye, senegalês de 18 anos. Seu melhor amigo e companheiro de trincheira, Mademba Diop, acaba morto por um soldado alemão de olhos azuis. Alfa teme ter provocado a morte de seu "mais que irmão" ao zombar dele e duvidar de sua coragem. Disposto a aplacar a culpa que sente e vingar o amigo, Alfa começa a emboscar soldados alemães para matá-los e lhes cortar uma das mãos com seu facão. Ele leva as mãos decepadas de volta para a trincheira e as guarda como souvenires. Aterrorizados com a mórbida coleção do "soldado chocolate", os soldados franceses começam a desconfiar que Alfa talvez seja um dëmm , um "devorador de almas".

— Ainda existem, na África Ocidental, representações do mal provenientes de culturas pré-islâmicas. Atribui-se uma causa à morte, como a hostilidade de um dëmm , um feiticeiro que pratica uma espécie de antropofagia simbólica, que devora o interior das pessoas, sua energia vital. — explica Diop. — Quando Alfa se torna ainda mais cruel no massacre dos inimigos, os outros soldados se exasperam por ver nele um reflexo da barbárie da qual eles próprios participam, mas que não nomeiam. A guerra é a selvageria com as regras e os rituais valorizados pela hierarquia militar.

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Apesar de narrar um livro escrito em francês, Alfa fala uólofe, língua da África Ocidental, e depende da tradução de um outro soldado "chocolate" para entender as ordens do capitão. Para que o leitor francófono (ou aquele que ler "Irmão de alma" em tradução) reconhecesse o ritmo do uólofe e também para emular a oralidade das culturas africanas, Diop investiu numa prosa poética, cheia de metáforas e repetições das expressões "meu mais que irmão" e "pela verdade de Deus", que aparecem, respetivamente, 23 e 144 vezes nas 128 páginas do livro. O autor quis que as repetições soassem como "ecos de um outro idioma".

— O francês me pareceu uma língua maleável, pois me permite forçar nele um outro horizonte cultural, a linguagem de uma sociedade em que a memória oral é fundamental. Memória é repetição — diz.

Atração de circo

Lançado em 2018, quando a França comemorava o centenário do fim da Primeira Guerra e o presidente Emmanuel Macron homenageava os tirailleurs , "Irmão de alma" é o segundo romance de Diop. O primeiro, "1889, l’attraction universelle" (1899: a atração universal), publicado em 2012 e ainda inédito no Brasil, imagina uma delegação de africanos que vai parar num circo em Bordeaux, onde são exibidos como se fossem animais exóticos. Segundo Diop, ambos os romances são reflexões sobre a História colonial francesa, da qual ele próprio (filho de uma francesa e de um senegalês) se reconhece como "um produto".

— Tenho duas sensibilidades culturais: uma senegalesa e uma francesa. Meus romances são, para mim, um meio de conciliá-las — afirma. — Note que digo "conciliá-las" e não "reconciliá-las", porque, para mim, essas duas sensibilidades não são antagônicas. Em mim, elas estão em harmonia.

Capa de "Irmão de alma", romance do franco-senegalês David Diop, publicado no Brasil pela Nós Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Irmão de alma", romance do franco-senegalês David Diop, publicado no Brasil pela Nós Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"Irmão de alma"

Autor: David Diop

Tradução: Raquel Camargo

Editora: Nós Páginas: 128

Preço: R$ 52