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Cultura

Professor de Harvard revê 200 anos de história da Cidade Nova

Livro de Bruno Carvalho pontua o rico intercâmbio cultural entre grupos de diferentes origens do bairro
Imagem interna do livro "Cidade porosa: dois séculos de história cultural do Rio de Janeiro", de Bruno Carvalho: em registro de 1913, o cortejo fúnebre de Pereira Passos, passando pela Praça Onze e o mangue Foto: Augusto Malta / Divulgação/Acervo Instituto Moreira Salles
Imagem interna do livro "Cidade porosa: dois séculos de história cultural do Rio de Janeiro", de Bruno Carvalho: em registro de 1913, o cortejo fúnebre de Pereira Passos, passando pela Praça Onze e o mangue Foto: Augusto Malta / Divulgação/Acervo Instituto Moreira Salles

RIO - Cidade exibida e degenerada, nascida sob o medo de invasores e hoje amedrontada por seus filhos, o Rio merece toda a vasta literatura a seu respeito. É um manguezal de histórias — se fuçá-lo direito, elas vêm à tona e sempre surpreendem. Prova disso está em “Cidade porosa”, do carioca Bruno Carvalho. Uma aula de Rio e, por extensão, de Brasil.

Professor em Harvard, Carvalho mostra como a cidade permite um intercâmbio cultural quase subversivo entre os diversos grupos que a compõem. Essa troca resiste a conceitos e preconceitos que vivem de construir barreiras sociais. A expressão popular, diz ele, pode desestabilizar desigualdades estruturais.

Na nossa já clássica “cidade partida”, nenhum muro é impermeável, e é assim que os opostos fazem a festa: pela fresta, como diria o historiador Luiz Antonio Simas. É graças a essa “porosidade” que o convívio improvável entre “desiguais” dribla os guetos. E isso dá samba. Samba, literatura e vida, como veremos.

A análise de Bruno Carvalho se concentra na Cidade Nova, mas não a que conhecemos hoje. A maior parte da área de que tratamos ainda pulsa, mas sob camadas de asfalto. Ele trata do bairro que nasceu por decreto, no século XIX, numa óbvia contraposição à “cidade velha”: em linhas gerais, o Centro e a região portuária, com morros que nem existem mais, como o do Castelo, e outros que perderam a importância de outrora, como o de Santo Antônio.

O Rio daquela época mal ia além do atual Campo de Santana, fronteira com um sertão que isolava Tijuca e São Cristóvão. No meio do caminho havia um pantanal. Foi em 1811 que D. João VI determinou incentivos para a ocupação desse vazio inóspito. E haja aterros, sobrados, cortiços... Essa “nova cidade” resolveu problemas habitacionais e melhorou deveras o caminho da família real até suas propriedades no longínquo São Cristóvão.

Maxixe, choro e samba

O bairro multiétnico que floresceu sobre os manguezais gerou uma riqueza cultural incomum. Africanos de diferentes etnias conviviam com judeus, além de imigrantes do interior do Brasil e da Europa, como portugueses, espanhóis, italianos, ciganos. A Cidade Nova e a vizinha Praça Onze foram o grande caldeirão do Rio, como nenhuma outra parte da cidade conseguiu.

Como não relacionar esse fuzuê à criação do maxixe, do choro, do samba? Como negar a possibilidade de tolerância entre diferentes? E como essa riqueza impalpável rima com a brutal desigualdade econômica? O Rio é assim e desperta questões desse tipo — o Brasil, também.

Bruno Carvalho mergulhou em fontes insuspeitas, que presenciaram o auge e a decadência do bairro: Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, João do Rio, Orson Welles... Na música, vem com Tia Ciata e Pixinguinha, entre outros. Sem falar nas diversas manifestações religiosas. Tudo na santa paz.

Mas o planejamento urbano oficial nem sempre rima com convívio social — ou até age para restringi-lo, como vemos em Brasília. No caso do Rio, sucessivas decisões dos governos da então capital federal reduziram a Cidade Nova a uma área pouco habitada e com muitas histórias soterradas, mas não mortas. Suas crias ecoam ainda hoje.

Com “Cidade porosa”, Bruno Carvalho reconhece, no entanto, esse papel relevante da Cidade Nova (e da Praça Onze) desde o século XIX até a construção da Avenida Presidente Vargas, em 1944. E ainda sugere que o rabo de galo criado naquelas priscas eras lembre-nos do que somos capazes de produzir quando respeitamos a existência dessas porosidades, essas frestas.

Os resultados vão muito além de questões culturais (como se fossem pouco). A política de cotas é um bom exemplo disso.

SERVIÇO. “Cidade porosa: dois séculos  de história  cultural do Rio de Janeiro”. Autor: Bruno Carvalho. Editora: Objetiva. Tradução: Daniel Estill. Páginas: 400. Preço: R$ 79,90. Cotação: Ótimo.