Cultura

Punk 'tosco', João Gordo mostra lado sensível em autobiografia

O vocalista dos Ratos do Porão e apresentador de TV se desconstrói em livro escrito com André Barcinski
O cantor e apresentador de TV João Gordo Foto: Rui Mendes / Divulgação
O cantor e apresentador de TV João Gordo Foto: Rui Mendes / Divulgação

RIO — O título da autobiografia, “Viva la vida tosca”, não foi dado por mero acaso: João Francisco Benedan, o João Gordo, aprontou muito. Como vocalista dos Ratos de Porão, a maior banda punk brasileira, ele apavorou o mainstream do rock nacional, fez um sólido nome no exterior e ajudou a fechar o Circo Voador num entrevero de seu público com o comitê do então prefeito eleito, Luiz Paulo Conde. Como apresentador da MTV, quase se viu em uma cena de pugilato com um de seus entrevistados, o ator Dado Dolabella. Sua língua criou inúmeros desafetos, alguns bem famosos. Drogas diversas, obesidade mórbida, punks e o próprio pai quase o mataram — mas ele voltou para contar o seu lado de histórias tão escabrosas que entraram para o folclore do showbiz brasileiro.

“Sempre achei que o mundo ia acabar nessa suástica de mandioca ungida. É o que está acontecendo com o Brasil”

João Gordo
Cantor

— Eu sou uma pessoa normal, véio ! As pessoas me veem como esse freak desmiolado, mas eu sou muito mais íntegro e sensível que um monte desses crentes que tem por aí. Eu, com todos os meus capetas, as minhas caveiras e os meus ódios, sou pai de dois filhos, um ser humano mais bondoso do que muitos. Cresci sem enganar ninguém, só dando a minha cara a tapa — defende-se, por telefone, de São Paulo, um João bem mais centrado do que o (auto)retratado nas páginas do livro. — Hoje as pessoas me cobram adolescência, mas se esquecem de que eu sou um senhor de 52 anos que paga imposto e conta, que tem filho na escola.

— O João é mais inteligente do que a imagem pública fazia transparecer. Ele gosta de livros e tem uma cultura geral vasta. Ele consegue ser amigo do Jello Biafra ( fundador da mítica banda punk californiana Dead Kennedys ) e da Adriane Galisteu — conta o jornalista André Barcinski, velho amigo do cantor, que assina com ele o livro (que chega às lojas no dia 23) e que o dirige no programa de entrevistas “Eletrogordo”, do Canal Brasil. — O João tem credibilidade alternativa e apelo de mainstream. Todo mundo sabe quem é ele mesmo sem saber quem são os Ratos de Porão.

Nas páginas de “Viva la vida tosca”, o público passa a conhecer um garoto de classe média baixa da periferia paulistana, criado pela TV aberta e a rádio AM, e que entra na adolescência, flerta com a delinquência e, enfim, encontra no punk a saída para uma existência assolada por surras constantes do pai, policial — uma delas, revela o livro, quase fatal.

Capa do livro 'Viva la vida tosca', de André Barcinski e João Gordo Foto: Divulgação
Capa do livro 'Viva la vida tosca', de André Barcinski e João Gordo Foto: Divulgação

— Quem apanha, quem é torturado não esquece jamais. A minha infância foi muito difícil, com aquele pai PM, meio louco. Não ia sair um ser humano normal de um relacionamento familiar desses — diz João, com sua rude e habitual franqueza. — O rock me deu uma identidade, e quanto mais as portas se fechavam com a minha família, mais ele era um escudo. Meu pai tentou me tirar da parada, me levou para o interior, mas eu só me afundei mais no punk. A repressão, tanto policial quanto paterna, só leva as pessoas para o ódio e para a luta. No fim, meu pai teve que me engolir, foi uma vitória da minha postura.

Hoje, paradoxalmente, é a família — a mulher, Viviana, e os filhos, Victoria e Pietro — que dão razão à sua existência:

— Por mais que eu tenha sido sempre contra essa instituição na minha vida tosca, tudo o que eu tenho hoje é a minha família. Uma família progressista, de mente aberta, não essa coisa retrógrada que querem aí, que é assustadora.

“Por mais que eu tenha sido sempre contra essa instituição na minha vida tosca, tudo o que eu tenho hoje é a minha família”

João Gordo
Cantor

O que também o fez resistir nesses tempos duros — em que chegou aos 210 quilos e foi ao fundo do poço da cocaína — foi a Ratos de Porão, banda que passou a integrar em 1983 e com a qual construiu seu patrimônio artístico.

— O prazer de estar em cima de um palco, mandando uma brasa naquela velocidade, com aquela ira toda, é mais forte do que qualquer droga — atesta João. — Financeiramente, não compensa muito, mas é um massageador de ego gigante. Neste ano a gente foi convidado para tocar no Hell Fest, que é o maior festival de heavy metal do mundo ( em junho, na França ). Tocamos para mais de 40 mil pessoas, no dia do Slayer e do Black Sabbath. Mas no Brasil a gente nunca é convidado para nada. Aqui, se eu quisesse ficar rico, ia ter que fazer funk ou forró.

— O João e os Ratos realmente são punks, com origem proletária. A bateria do Betinho, o primeiro baterista, era feita de lata. Eles não tinham instrumentos — informa André Barcinski, que insistiu para que o amigo escrevesse sua própria biografia (“O João conta as histórias de um jeito muito legal”, diz), mas que teve que recorrer a depoimentos de amigos e parentes para ser fiel aos fatos. — Houve épocas em que o João não estava nas melhores condições para testemunhar o que aconteceu. Do que houve no Circo Voador ( em 1996 ) com o Conde, ele não lembrava nada.

"SUÁSTICA DE MANDIOCA UNGIDA"

Em tempos pesados de política, músicas dos Ratos de Porão de mais de 20 anos atrás, como “Igreja Universal”, “Farsa nacionalista” e “Retrocesso”, surpreendem João ao serem compartilhadas em redes sociais com comentários sobre os atuais descaminhos do Brasil.

— Nada foi profético. Eu fui narrando o que estava ao meu redor durante as décadas. Em 35 anos, se você for pegar letra por letra, lógico que vai ter muita coisa estúpida, mas muita também que conta o que estava acontecendo na época. É o Brasil, são os políticos e o povo que não mudam — explica. — Sou um pessimista nato. Sempre achei que o mundo ia acabar nessa suástica de mandioca ungida. É o que está acontecendo com o Brasil.

Dos arrependimentos, o maior foi ter trabalhado na TV Record, da Igreja Universal, confessa João, que é agnóstico, e que sonha com um filme sobre sua vida.

— Eu tenho as minhas dúvidas, e justamente por ter essas dúvidas é que eu não sou um cara completamente ateu. Acredito em uma força que tem por aí que a gente não pode explicar. Meu satanismo era puramente provocativo — conte ele, que ia trabalhar na Record com camisas de sinistras bandas de black metal.

"Viva la vida tosca" (LEIA UM TRECHO ABAIXO)

Autor: André Barcinski e João Gordo.

Editora: Darkside Books.

Páginas: 320.

Preço: R$ 59,90.

"Enquanto isso, meus programas iam super bem. O 'Gordo Pop Show' começou a se destacar. Um dos episódios mais comentados foi o em que eu entrevistei o Sérgio Mallandro e o Bozo juntos. O Mallandro ficou o tempo todo dizendo que ia contar um segredo sobre mim. Tenho certeza de que ele falou com alguma amiga puta, que disse pra ele que eu tinha broxado ou algo do tipo, e ele queria falar aquilo no ar. Numa hora, não lembro por quê, o assunto chegou em cocaína, e o Mallandro jurou pelos filhos dele que nunca tinha dado um teco na vida, vê se pode? A gente começou a discutir e o clima ficou pesado. Eu xinguei ele, e o Bozo ficou botando panos quentes, tentando apaziguar: 'João Francisco, sossega, João Francisco!' Você sabe que um programa é realmente doido quando a pessoa mais sensata ali é o Bozo."