Coluna
José Eduardo Agualusa

Quando o leão constrói a própria jaula

Além de ter a música como tema, o livro 'Também os brancos sabem dançar' se desenvolve como uma canção

Em maio do próximo ano a editora Todavia (a melhor surpresa no mundo da edição em língua portuguesa em 2017), irá publicar no Brasil o primeiro romance de Kalaf Epalanga, “Também os brancos sabem dançar”. O livro foi lançado este mês em Portugal com o selo da Caminho, editora de Saramago e Mia Couto, num evento que juntou numa das mais nobres e mais belas salas de teatro de Lisboa, o São Luís, muitos nomes da música popular e do hip-hop português e africano.

A presença de tanta gente ligada à música não surpreende. Kalaf foi um dos fundadores e principais pensadores do Buraka Som Sistema, famosa banda de música eletrônica luso-angolana responsável pela internacionalização do kuduro. O romance, aliás, pretende contar a história do nascimento e da construção do kuduro, um ritmo que nasceu nos musseques (favelas) de Luanda, e foi ostracizado e ridicularizado por boa parte da autoproclamada elite intelectual angolana, antes de conquistar plateias um pouco por todo o mundo.

A editora apresenta o título de estreia de Kalaf como um “romance musical”. Acho uma ótima definição. Não apenas porque o romance tem a música como tema, mas também porque se desenvolve como uma canção.

Em várias entrevistas recentes o autor confessou a sua admiração por Ruy Castro, dizendo que a leitura de “Carnaval de fogo” o ajudou a pensar e a construir o romance. A primeira parte tem realmente certo parentesco com o título de Ruy. É uma espécie de biografia do kuduro, tendo como narrador o próprio Kalaf, e apresentando uma série de personagens — uns burlescos, quase caricaturais, outros vagamente assustadores — que estiveram na origem e no desenvolvimento do ritmo luandense. Fica difícil distinguir, nessa primeira parte, aquilo que é real da pura ficção, jogo muito divertido para os leitores mais familiarizados com o tema. A segunda parte tem como narradora uma portuguesa branca, professora de dança, apaixonada pelo vibrante universo africano de Lisboa; a terceira e última parte dá voz ao polícia norueguês que prendeu Kalaf durante uma visita de trabalho que este fez a Oslo. A prisão realmente aconteceu, mas o polícia é fictício. Esta terceira parte, a mais interessante de um ponto de vista literário, confirma Kalaf na sua reencarnação como escritor.

O ponto alto do lançamento do romance, no Teatro São Luís, foi um debate entre três apresentadores distintos, duas portuguesas de origem africana, a atriz Cláudia Semedo e a jornalista e blogueira Carla Fernandes, e o músico e artista plástico angolano Nástio Mosquito. Carla Fernandes coordena um audioblog, o Afrolis, no qual “artistas e pessoas comuns, e menos comuns, falam sobre negritude, racismo e identidade, revelando facetas da consciência negra emergente em Portugal”. Coube-lhe animar o debate, atacando, com grande coragem, dado o palco em que estava, o romance que lhe cabia apresentar. Para Carla, Kalaf falhou ao não dar voz às mulheres negras. Pior, na opinião dela, colocou uma mulher branca a falar sobre questões que deveriam ser discutidas, em primeiro lugar, por mulheres negras.

Kalaf não contava com o ataque. Mas assim que recuperou o fôlego foi, como sempre, elegantíssimo, agradecendo a frontalidade da jornalista e explicando ter optado por uma mulher branca como narradora do seu livro para evidenciar, de forma até um pouco irônica, a vitalidade dos ritmos africanos, que tomaram de assalto a antiga potência colonizadora — colonizando-a. A socióloga (também ela negra) Joacine Katar Moreira publicou uma crítica ao livro no jornal “Público”, bastante positiva, mas na qual igualmente estranha a ausência da mulher negra no romance.

Como Kalaf, também eu nunca imaginei que o romance pudesse ser atacado por aquele flanco. Durante décadas a crítica europeia, ou ocidental, cobrava aos escritores africanos (e também aos latino-americanos) uma suposta autenticidade. Com isso estava implícita a sugestão de que um escritor africano deveria escrever apenas sobre África, ou melhor, sobre aquilo que os europeus entendiam ser África. Não foram poucos os escritores africanos que se deixaram cair nesta armadilha ingênua, um pouco como um leão que construísse a sua própria jaula. As novas gerações de escritores africanos, como Chimamanda Adichie, Teju Cole ou Sami Tchak, entre tantos outros, quebraram a armadilha: são escritores que se acham no direito de olhar, e de ocupar, o mundo inteiro.

Kalaf faz isso ao colocar-se na pele de uma portuguesa branca ou de um polícia norueguês. A grandeza do (agora) escritor angolano está nesta capacidade de sair da própria pele, e do seu mundo íntimo, que inclui, naturalmente as mulheres negras, e olhar o mundo através dos olhos dos outros.

Leia todas as colunas...