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Cultura

Quem são os pensadores negros que nos ajudam a entender o Brasil e o mundo?

Neste Dia da Consciência Negra, artistas e intelectuais de diferentes áreas indicam, a convite do GLOBO, leituras essenciais para reforçar a biblioteca da sua casa
Joel Rufino dos Santos, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e Milton Santos: intelectuais negros que pensaram o Brasil Foto: Montagem
Joel Rufino dos Santos, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e Milton Santos: intelectuais negros que pensaram o Brasil Foto: Montagem

SÃO PAULO — Dê uma olhada em sua biblioteca. Procure naquelas estantes onde estão edições surradas da coleção "Os pensadores" e as obras de Nicolau Maquiavel , Adam Smith, Karl Marx, Sigmund Freud e um ou outro filósofo (provavelmente grego, francês ou alemão) a quem você recorre, de vez em quando, para checar uma citação ou entender os avanços e recuos da História. Há algum autor nascido na África subsaariana ou no Caribe? Nas suas prateleiras, quais pensadores negros estão, lombada a lombada, com nomes como Sergio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Celso Furtado e outros intelectuais reconhecidos como intérpretes do Brasil?

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Ainda que as editoras estejam publicando cada vez mais autores negros, o cânone permanece branco. Neste Dia da Consciência Negra, o GLOBO pediu indicações a artistas e intelectuais negros de obras de autores negros que nos ajudam a entender o Brasil e o mundo, e que deveriam constar em qualquer biblioteca. As sugestões vieram de Lázaro Ramos, Nei Lopes , Sol Miranda, Paulo Scott , Rodrigo França , Keyna Eleison , Bia Ferreira , Flávio dos Santos Gomes , Linn da Quebrada , MahalPita, Dodô Azevedo, Jeferson Tenório , Eliana Alves Cruz , Ynaê Lopes dos Santos, Sabrina Fidalgo e Tulio Custódio.

Segundo o ator e ex-BBB Rodrigo França, autor de "Confinamentos & afins" (Agir) e "O pequeno príncipe preto" (Nova Fronteira), constatar a ausência de africanos e afrodescendentes no cânone é "um dos primeiros atos racistas com que as crianças negras se deparam na escola". Para o historiador Flávio dos Santos Gomes, há uma "deliberada exclusão, disfarçada de esquecimento, de intelectuais negros brasileiros" nas universidades.

— Em termos teóricos, é até engraçado, pois há um movimento de resgate de pensadores como Franz Fanon, Eric Williams, Orlando Patterson e Stuart Hall, todos negros — diz. — Por outro lado, há também um total esquecimento de autores negros brasileiros que escreveram não apenas sobre escravidão, raça, mas refletiram sobre a sociedade brasileira em termos abrangentes e profundos.

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Um dos livros sugeridos pela atriz e pesquisadora Sol Miranda é "Maioria minorizada", do rapper e cientista social Richard Santos. Segundo Sol, o título é oportuno, é "nossa contradição brasileira":

— As escritas negras podem ampliar a cultura como vetor de desenvolvimento educacional, social e econômico. Podem mudar o mundo — afirma. — Por uma literatura diversa e representativa em nossas prateleiras!

A seguir, confira algumas das indicações coletadas pelo GLOBO para diversificar sua biblioteca.

No Brasil e no mundo, pensadores negros questionam a história única escrita por intelectuais brancos Foto: André Mello
No Brasil e no mundo, pensadores negros questionam a história única escrita por intelectuais brancos Foto: André Mello

'O genocídio do negro brasileiro', de Abdias do Nascimento

Expressão cada vez mais comum no noticiário e na política, o "genocídio do negro brasileiro" foi descrito nesta obra publicada, em 1978, por Abdias do Nascimento (1914-2011), fundador do Teatro Experimental do Negro e um dos maiores intelectuais brasileiros. No livro, Nascimento desmente a famosa "democracia racial" brasileira e refuta as crenças de que aqui, diferentemente dos EUA e da África do Sul, não havia segregação racial. Segundo ele, o negro brasileiro era vítima de um "racismo mascarado" e de políticas de extermínio nunca assumidas pelo discurso político. A primeira edição do livro contou com prefácios do sociólogo Florestan Fernandes e do escritor nigeriano Wole Soyinka, o primeiro africano a ganhar o Nobel de Literatura. Entre as outras obras de Nascimento estão: "O racismo e o negro no Brasil", "O quilombismo" e "O negro revoltado". Este último, segundo o escritor e sambista Nei Lopes, "demonstra que a problemática do negro é a problemática do Brasil atual".

'Por um feminismo afro-latino-americano', de Lélia Gonzalez

Recém-lançada pela Zahar, a coletânea reúne ensaios e intervenções na imprensa da antropóloga mineira Lélia Gonzalez (1935-1994), pioneira do que hoje se chama "interseccionalidade", articulação intelectual e política entre categorias como raça, gênero e classe. A contribuição de Lélia Gonzalez para o feminismo negro já foi reconhecida pela filósofa e ex-Pantera Negra Angela Davis . Quando esteve no Brasil, no ano passado, a americana afirmou: "aprendi mais com Lélia González do que vocês aprenderão comigo". Entre outras obras, Lélia escreveu, com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg, "Lugar de negro", que, segundo Nei Lopes, "mostra que o problema etnorracial no Brasil está ligado à questão das classes e do destino político da nação".

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'As almas da gente negra', de W.E.B. Du Bois

Você sabia que um dos pais da sociologia americana foi um negro chamado William Edward Burghardt Du Bois? Primeiro afro-americano a se doutorar na Universidade Harvard, publicou, em 1903, "As almas da gente negra". Considerado um dos primeiros tratados sociológicos, o livro descreve o que é ser negro nos Estados Unidos a partir, também, de suas próprias experiências. Du Bois teorizou o que chamou de "dupla consciência": como um grupo oprimido enxerga a si mesmo e como ele é visto pela sociedade. Ele morreu em 27 de agosto de 1963, um dia antes de Martin Luther King proclamar o discurso "Eu tenho um sonho".

'Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas', de Clóvis Moura

Uma das primeiras obras a apresentar a resistência dos negros ao cativeiro e questionar a imagem (popularizada por Gilberto Freyre) dos africanos que se submetem ao senhor sem lutar, o livro de Moura (1925-2003), publicado em 1959, aponta para a importância das comunidades quilombolas para as rebeliões dos escravizados. Marxista, Moura enxergou nos escravizados a classe explorada que, em economias desenvolvidas, equivaleria ao trabalhador assalariado, e, em suas rebeliões, imagens de revoluções proletárias.

'Introdução crítica à sociologia brasileira', de Alberto Guerreiro Ramos

Guerreiro Ramos (1915-1982) é um dos pais da sociologia no país. Em "Introdução crítica à sociologia brasileira", publicado em 1957, ele incluiu o capítulo "A patologia social do 'branco' brasileiro", escrito dois anos antes, no qual inaugura uma reflexão sobre a branquitude no Brasil. Segundo Guerreiro Ramos, o branco brasileiro, por saber que não é europeu, inventa o racismo para se diferenciar do negro e ganhar, assim, uma identidade. Intelectual aguerrido, Guerreiro Ramos também é autor de livros como "O problema nacional do Brasil", de 1960, no qual reprisa a tese de que o "problema negro" é, na verdade, um problema da elite "branca".

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'Tornar-se negro', de Neusa Santos Souza

Psiquiatra e psicanalista lacaniana, Neusa publicou "Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social", em 1983. Segundo o escritor Jeferson Tenório, "trata-se uma análise profunda sobre o percurso dos negros dentro de uma sociedade racista, abordando as questões identitárias, econômicas e sociais". Autora também de obras de teoria psicanalítica, como "A psicose: um estudo lacaniano" e "O objeto da angústia", ela estudou o processo de “branqueamento” a que são submetidos os negros brasileiros e também sua baixa autoestima. Quando Neusa faleceu, em 2008, aos 60 anos, a Fundação Palmares saudou "Tornar-se negro" como "primeira referência sobre a questão racial na psicologia".

'Procure por mim na tempestade', de Marcus Garvey

Ativista, jornalista, editor e empresário jamaicano, Marcus Garvey (1887-1940) lançou as bases do que depois recebeu o nome de pan-africanismo, ideologia que influenciou diversos movimentos políticos ao longo do século XX. Garvey propagandeou o nacionalismo negro pela Jamaica, à época colônia britânica, e fundou organizações de auxílio à comunidade negra. Segundo o cineasta Dodô Azevedo, "os escritos de Garvey são considerados o evangelho do pan-africanismo, da ideia do continente africano como o centro do mundo, para onde todos os descendentes dos escravizados das Américas deveriam voltar suas energias".

'A escravidão no Brasil', de Joel Rufino dos Santos

Carioca, botafoguense, historiador, romancista e militante, Rufino dos Santos (1941-2015) foi um estudioso da cultura africana e da questão do negro no Brasil. Em "A escravidão no Brasil", abordou o tema sobre o qual muitos intelectuais brancos já haviam se debruçado, e o esmiuçou como acadêmico e também como homem negro. No livro, além de falar sobre tráfico negreiro e a vida dos escravizados, Rufino dos Santos reflete também sobre a necessidade de se estudar a escravidão hoje e analisar as marcas que ela deixou na sociedade brasileira.

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'Beatriz Nascimento: intelectual e quilombola'

Ainda pouco conhecida, a sergipana (1942-1995) foi pioneira ao eleger a experiência subjetiva dos negros brasileiros como objeto de estudo. Publicada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas de São Paulo (UCPA), a coletânea reúne textos (alguns deles inéditos) escritos nas décadas de 1970 e 1980. Flávio dos Santos Gomes chama Beatriz de "uma das mais importantes intelectuais da sua geração" e o livro de "um clássico sobre a história do (e no) Brasil".

'A lenda da modernidade encantada', de Marcelo Paixão

Segundo Flávio dos Santos Gomes, o livro do economista e professor da Universidade do Texas, nos EUA, publicado em 2013, "já nasceu um clássico". Paixão revisita o pensamento de intérpretes do Brasil como Gilberto Freyre, Caio Prado Junior e Celso Furtado e revela como "a ideia de raça e de exclusão racial foi silenciada ou vista como um obstáculo à modernidade".

'O espaço dividido', de Milton Santos

Um dos maiores geógrafos brasileiros, Milton Santos (1926-2001) ganhou projeção internacional ao pensar sobre a urbanização do Terceiro Mundo. Em 1979, ele publicou sua obra-prima, "O Espaço dividido", no qual retoma um assunto que perpassa toda a sociologia crítica brasileira: o subdesenvolvimento. No livro, Santos analisa casos da América Latina, África e Ásia para descrever a situação de dependência desses países em relação às economias centrais e o impacto do subdesenvolvimento na vida de suas populações. "O espaço dividido" é esforço para formular uma "economia política da urbanização do Terceiro Mundo". Entre os outros livros de Santos destacam-se "Por uma geografia nova" e "Espaço e sociedade".

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'A deseducação do negro', Carter Woodson

Neste livro, publicado em 1933, o historiador americano (1875-1950), considerado o "pai da história negra", argumenta que as escolas e professores brancos educavam os negros para serem "leprosos sociais". Ele defendia que crianças negras frequentassem escolas específicas, onde aprendessem a história, a filosofia e a cultura africanas. "A deseducação do negro" inspirou "The miseducation of Lauryn Hill", disco de estreia da rapper americana que ganhou o Grammy de Álbum do Ano de 1998.

'A invenção das mulheres', de Ovèrónke Oyewùmí

Ainda inédito no Brasil, o livro da feminista nigeriana, resultado de sua tese de doutorado, foi publicado em inglês em 1997. Com o subtítulo "Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero", a obra apresenta a categoria "gênero" como uma imposição colonialista. Apoiada em etnografias, relatos de viajantes e em uma pesquisa da língua iorubá, Oyewùmí concluiu que, antes da colonização por potências europeias, os povos africanos desconheciam a divisão dos papéis sociais de acordo com o gênero. Se alguma divisão havia, era etária, e não sexual.