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Cultura

'Racismo não pode mais ser um assunto só de preto’, diz a atriz Jéssica Ellen

Cria da Rocinha e prestes a estrear como par romântico de Chay Suede em ‘Amor de mãe’, ela lança clipe em homenagem à avó e fala sobre a construção de sua autoestima: ‘Quando Taís Araújo fez comercial de beleza, tudo mudou para mim'
Jéssica Ellen Foto: Divulgação / Wendy Andrade
Jéssica Ellen Foto: Divulgação / Wendy Andrade

Desde pequena, a atriz e cantora Jéssica Ellen, de 27 anos, ouve a mãe, empregada doméstica que sonhava em ser professora, falar da luta da mulher negra e pobre no Brasil — “a base da pirâmide e a principal vítima de feminicídio e violência sexual no país”, destaca Jéssica.

Nascida e criada ao lado dos três irmãos na Rocinha, numa casa repleta dessa presença (além da mãe, havia as tias e a avó), ela precisou olhar para trás e reverenciar sua ancestralidade para seguir em frente.

— Essas mulheres pretas foram fortes porque não tinham opção. Não posso passar por isso e achar que está tudo bem. Respeito e sou grata. Hoje, posso oferecer outra realidade à filha que um dia terei — diz a atriz, que lançou disco em homenagem à família, “Sankofa” (na tradição africana, significa aprender com o passado para construir o futuro) e se apresentou ao lado de Elza Soares no palco Sunset do Rock in Rio deste ano.

Graças ao esforço da mãe (com o pai, açougueiro, teve pouco contato), que preenchia o tempo da filha com cursos gratuitos, ela pôde romper o duro histórico familiar de falta de oportunidade. É a primeira da família a se formar na faculdade (em dança, na Angel Vianna), graças ao Prouni. Fala inglês fluentemente, estudou teatro e hoje é contratada da TV Globo.

Estreou em “Malhação”, mas brilhou mesmo em “ Justiça ”, na pele de Rose, que sofreu com racismo. Seus trabalhos mais recentes foram em "Filhos da pátria" e "Assédio" . Agora, encara seu papel de maior destaque, na novela “Amor de mãe”, que estreia no dia 25. Ela é Camila, professora de História, filha da protagonista Regina Casé e par romântico de Chay Suede.

Protegida por uma guia de Xangô no pescoço — a iniciação ao candomblé foi mais uma etapa na busca por sua ancestralidade — , ela falou também sobre o papel que sonha em interpretar, de representatividade negra na TV e da construção de sua autoestima

Você e Camila são filhas de empregadas domésticas e as primeiras de suas famílias a ingressar na universidade. Há muito em comum, né?

Compartilhamos a paixão pela educação. Minha mãe lutou muito para dar a educação que não teve aos ( quatro ) filhos. Leio o texto da novela e lembro de cenas que vivi com professores. Dedico minha personagem a uma professora de História que tive, a Sueli Maria. Quando a Regina ( Casé ) fala em cena, vejo minha mãe encarnada. Penso: “Como, com um salário mínimo, ela conseguia manter uma casa?”. Nunca tive luxo, mas nunca faltou nada. No fim do ano, tinha até iogurte.

O que significa ser par romântico de Chay Suede, principal galã dessa geração?

O Chay é ótimo, joga junto. Eles vão viver uma relação interracial e acho que isso nem é uma questão. O fato é que sinto falta de casais pretos protagonistas, como em “Mister Brau”. Por que foi um sucesso absoluto? Porque a gente precisa se ver representado.

Sente falta de galãs pretos?

Sim. A gente precisa de galãs pretos para que não seja uma questão. Espero o dia em que atores sejam escalados só pelo talento. Ainda catamos quantos pretos têm numa produção. Mudou, mas ainda é pouco. Cresci vendo Taís Araújo e Camila ( Pitanga ). Hoje tem Aline Dias, Luellem de Castro, Jeniffer Dias. Mas ainda não são todas protagonistas. Outras atrizes da minha geração, brancas, já começaram como protagonistas. Eu demorei a ter um papel de destaque.

Você fez sucesso em “Justiça”, em que viveu situações de racismo. Como foi?

A cena da prisão da Rose ( flagrada com drogas e detida, ao contrário da amiga branca, sequer revistada ) me emocionou. Chorei muito. Minha mãe sempre dizia “ó, ali tá a boca, é esse caminho que você quer?”. Eu saía para a escola e ouvia “pó de R$ 20, pó de R$10”. Quando houve o assalto no Intercontinental ( em 2010 ), vi pela TV um garoto que estudou comigo. Meu lugar ainda é de exceção. Mas a comunidade preta não está mais no lugar de agradecer migalhas. Você vai a Madureira ou no Jongo da Serrinha e vê a autoestima lá no alto, ninguém tem questão com o cabelo. Mas a mudança é lenta.

Jéssica Ellen Foto: Divulgação / Wendy Andrade
Jéssica Ellen Foto: Divulgação / Wendy Andrade

Cabelo foi questão para você?

Muito. Alisei durante anos. Ligava a TV e era só Gisele Bündchen. Como você constrói identidade e autoestima ouvindo que seu cabelo não é bom? A primeira vez que fui à escola com o cabelo natural, todo mundo riu. Quando a Taís Araújo fez comercial de beleza, tudo mudou para mim. Pensei: ‘Caraca, agora não preciso mais machucar meu cabelo, porque estou alisando há tanto tempo?”. Para ser pioneira, como Taís e Zezé ( Motta ), tem que ter coragem de bater de frente até com você mesma no espelho. Falar: “Cara, você é linda!”. Mas demorou, viu?

O que acha do mês da Consciência Negra?

Brinco que, em novembro, a galera lembra que preto existe. É tanto convite pra show... Para acalmar o ego e dizer que é consciente? Sei que sou preta o ano inteiro, desde que nasci. As pessoas precisam sair da zona de conforto. É desconfortável explicar o óbvio, dizer ao diretor que não posso fazer a cena daquela maneira porque corrobora com tal ideia. O racismo não pode mais ser um assunto só de preto. Os brancos precisam se questionar. “Será que quando o menino atravessou a rua e segurei a bolsa fui racista?”. Foi, sim! Todo mundo quer falar que teve uma mãe preta. Sua mãe preta era a minha mãe, que se desdobrava em duas, deixava a caçula com a irmã mais velha para levar o sustento para a casa.

Depois do disco dedicado à sua família, você lançou o clipe “Madá” em homenagem à sua avó. Reverenciar suas antecessoras é uma preocupação constante?

A música da minha avó baixou em mim, não compus, fiz download ( risos ). Eu estava cozinhando, começaram a vir as frases, fui anotando. Era a história da minha avó e de tantos outros ancestrais. Em cento e tantos anos, o que o povo preto fez após a escravidão... Como conseguiram? Acabou a escravidão, mas a gente não podia ir à escola, trabalhar, estudar, a galera ficou abandonada. Depois que me iniciei no candomblé, há cinco anos, veio um entendimento do que antes era apenas intuitivo.

Como foi sua iniciação e como enxerga o racismo religioso?

Quando cheguei no terreiro e ouvi aquelas canções em iorubá, comecei a chorar. Tive a sensação de estar me descolonizando, como se estivesse pegando um navio de volta à África. Tem gente que fala sobre o sacrifício animal, mas e o peru de Natal? Porque só o frango sacrificado e comido no candomblé é demonizado? Não quero ser atacada por uma escolha minha que não influencia a vida de ninguém.

Que personagem sonha em intepretar?

Uma periguete favelada para fazer piada, usar gírias da Rocinha, me reconectar com as raízes. Gosto de fazer drama, mas chorar o dia inteiro é cansativo.