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Cultura

'Recusa de homens a usar máscara resume masculinidade tóxica', diz o escritor britânico JJ Bola

Para o autor de 'Seja homem: a masculinidade desmascarada', não é coincidência que os países com mais mortes por Covid-19 tenham 'pretensos machões' como líderes, como Trump, Bolsonaro e Boris Johnson
O escritor britânico JJ Bola, autor de "Seja homem: a masculinidade desmascarada" (Dublinense) Foto: Reprodução / Divulgação
O escritor britânico JJ Bola, autor de "Seja homem: a masculinidade desmascarada" (Dublinense) Foto: Reprodução / Divulgação

SÃO PAULO — “Deus do céu!”, reagiu o escritor britânico JJ Bola ao descobrir que, além de não usar máscara, chamar a Covid-19 de “gripezinha” e os brasileiros que têm medo da doença de “maricas”, o presidente Jair Bolsonaro às vezes se refere a si próprio como “Johnny Bravo”, o fortão dos desenhos animados.

Nascido na República Democrática do Congo e criado em Londres, Bola é autor de “Seja homem”, livro no qual defende o abandono da masculinidade tóxica que se propaga às custas da saúde e da sanidade mental dos homens. A obra, que saiu no Brasil no final de 2020, com prefácio de Emicida, mostra como o patriarcado oprime a todos, não apenas às mulheres, e argumenta que nenhum movimento político beneficiou mais os homens do que o feminismo.

Em entrevista por Zoom ao GLOBO, Bola aponta a urgência das lutas contra a violência sexual e pela diminuição do suicídio entre os homens. Ele defende que a masculinidade é uma performance e vê na recusa de alguns em usar máscara em público um bom exemplo da tal masculinidade tóxica.

Por que falar de masculinidade quando outros grupos são mais oprimidos do que os homens?

Sim, mulheres e pessoas transgêneros são as maiores vítimas do patriarcado. No entanto, há poucos livros e campanhas dirigidos aos homens explicando por que eles são cúmplices. Às vezes, nós, homens, pensamos que se não fizermos nada de errado não temos nada a ver com essa violência. Mas mesmo que você seja só um homem de classe média, o patriarcado também te beneficia. Eu sou negro e, portanto, impactado pelo racismo diariamente. Apesar disso, sou privilegiado pelo meu gênero. Se eu pensasse só em termos de raça e esquecesse o gênero, não entenderia a posição que me é dada na hierarquia social. Como homens, temos que entender como nossa posição impacta nossa vida e a dos outros.

Por que não escrever sobre masculinidade negra?

A masculinidade negra é o lugar de onde eu falo, mas algumas das minhas experiências são comuns a todos os homens. Quis que o livro fosse uma conversa com todos os homens, e alguns deles não leriam um livro sobre masculinidade negra, pensando que não teria nada a ver com eles.

Se certas noções de masculinidade oprimem também os homens, que pagam com a saúde mental, por que elas têm tantos defensores?

É patriarcado internalizado, Síndrome de Estocolmo. Quando aprendemos sobre o patriarcado e como ele opera, já internalizamos ideias sobre o que é ser homem e nem temos consciência do que, de fato, estamos defendendo. Às vezes, as pessoas defendem algo ruim para elas para se identificar com o poder. Por exemplo, aqui no Reino Unido, fala-se mal de quem depende de auxílios do governo, mas não dos bilionários que controlam a riqueza que falta aos mais pobres. A maioria das pessoas não percebe que está mais próxima de precisar de auxílio do governo do que de virar bilionário.

O que esperar da masculinidade do futuro?

Adoraria viver num mundo em que não somos divididos em categorias como masculino e feminino, onde todos possam ser quem são sem medo da violência. Mas sei que este mundo ainda está longe. Então, o primeiro passo é enfrentar a violência sexual e as altas taxas de suicídio entre os homens, que se matam três vezes mais do que as mulheres. A ideia de que homens têm que ser fortes, estoicos, lobos solitários que não precisam de ninguém é uma das razões por que homens não cuidam de si, colocando eles próprios e suas relações em risco. Temos que nos livrar da ideia de que homem tem que ser forte, porque essa força não é entendida como resiliência ou maturidade emocional, mas como um poder a ser exercido sobre o outro.

Você nasceu na República Democrática do Congo e foi criado em Londres. Como viver entre duas culturas moldou sua ideia de masculinidade?

Crescer entre duas culturas me fez entender que masculinidade é performance. Na cultura congolesa, homens andam de mãos dadas, dançam rebolando, usam roupas coloridas e espalhafatosas e são vaidosos. No Ocidente, homem não dança, não é vaidoso e nunca andam de mãos dadas com outro homem. Na minha bolha congolesa, eu dançava, fazia tudo o que se espera de um homem congolês. Fora dela, o que se esperava de um homem britânico. Indo de uma cultura à outra, aprendi a questionar essas diferenças e ser eu mesmo, apesar das expectativas culturais. Se masculinidade é performance, podemos criar uma versão dela que seja melhor para nós e nos mantenha saudáveis.

Você diz que “a vergonha é uma emoção central, impositiva e degradante na identidade masculina”. Que vergonha é essa?

A vergonha é usada para botar pressão. Pense na pressão que os adolescentes enfrentam para fazer sexo. Se um garoto de 16, 17 anos ainda é virgem, sente vergonha e faz de tudo para transar e contar vantagem aos amigos, dizer que é o cara. O mesmo vale para o dinheiro. A vergonha de não ter dinheiro leva jovens pobres ao crime e a arriscar suas vidas. A vergonha molda a cabeça dos homens sem que eles notem.

Há casais heterossexuais na rua em que a mulher usa a máscara corretamente e o homem, não. O que esse comportamento denuncia da masculinidade?

É um bom resumo da masculinidade tóxica. Muito mais homens acreditam em teorias da conspiração sobre o coronavírus do que mulheres. Os protestos antilockdown são liderados por homens. Não é à toa que os países com mais mortos por Covid-19 são ou eram governados por pretensos machões, como Bolsonaro, Boris Johnson (primeiro-ministro britânico) e Donald Trump (ex-presidente americano) .

Serviço:

Capa de "Seja homem: a masculinidade desmascarada", do escritor britânico JJ Bola, publicado pela Dublinense Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Seja homem: a masculinidade desmascarada", do escritor britânico JJ Bola, publicado pela Dublinense Foto: Reprodução / Divulgação

“Seja homem: a masculinidade desmascarada”

Autor: JJ Bola. Tradução: Rafael Spuldar. Editora: Dublinense. Páginas: 176. Preço: R$ 54,90.