Cultura

Reinaldo Moraes: 'Escrevo livros de 500 páginas porque sou um idiota'

Autor fala sobre nova ficção após nove anos, flerte com cinema, onda conservadora e como (não) ser um 'dinossauro ético' em 2018
O escritor Reinaldo Moraes Foto: Renato Parada / Divulgação
O escritor Reinaldo Moraes Foto: Renato Parada / Divulgação

São quatro horas de uma abafada tarde paulistana, logo antes de chover, quando Reinaldo Moraes chega ao Pilar Restaurante e Lanchonete, um pé-sujo encravado entre as grifes dos Jardins. O escritor explica sua escolha de endereço (“morei anos aqui do lado, até semana passada”) e se dirige à mesa mais distante do trânsito da Alameda Campinas — sua favorita.

Nesta calçada, ele conta, começou a surgir “Pornopopeia”, 500 páginas de “minha egotrip de luxo” que renderam sucesso de crítica e público em 2009. Considerado um clássico contemporâneo, era seu último livro de ficção até o recém-lançado “Maior que o mundo” — o primeiro de uma trilogia em que cada obra tem “pelo menos” 450 páginas. “Será que alguém vai ler?”, Moraes pergunta.

O protagonista de “Maior que o mundo”, Kabeto, é um escritor com bloqueio criativo que perambula por São Paulo registrando num gravador impressões imediatas, memórias sexuais e aventuras químicas. Moraes tem estilo parecido: começa falando do novo romance e vai abrindo abas sobre mercado editorial, política brasileira, vida em família, envelhecer. Aos 68 anos, ele diz: “Tem novidades que meu personagem não consegue entender. Assim como eu.”

A seguir, os principais trechos do papo regado a cerveja, cachaça e amendoim.

Os nove anos sem lançar ficção foram planejados?

Não! Eu queria lançar algo logo, estava batucando o tempo inteiro. Quando passou o auê do “Pornopopeia”, já comecei outro romance. Estava com 700 páginas, era a história de um bicheiro que mata um monte de gente. Aí ele morre, vai pro céu, mas é um céu esquisitíssimo, ele não sabe porque está ali, rola uma metafísica... Mas não conheço nenhum bicheiro. Era só uma palavra, “bicheiro”, sem substância. Resolvi pesquisar. Estava enrolando, repensando tudo, quando, em 2012, apareceu um convite para escrever um filme.

Como surgiu essa proposta?

Um jovem cineasta, Roberto Marques, queria filmar “Pornopopeia”. Como eu já tinha vendido os direitos, ele encomendou o roteiro de uma espécie de “Pornopopeia 2”. Ele disse: “quero que tenha Rua Augusta, putas e drogas!” Eu disse: “Deixa comigo!” Entreguei o roteiro de “Maior que o mundo” (já filmado, deve estrear em 2019) e, a partir dele, comecei a fazer um livro. Isso faz cinco anos. Quando passou de mil páginas senti que era melhor dividir em uma trilogia. (Pausa.) Será que alguém vai ler?

Diga você: por que só fazer livros de 400, 500 páginas?

Primeiro, porque eu sou um idiota. Dizem que o romance foi pras bicas, todo mundo só quer ver seriado, e eu sigo apostando nesse formato. Enfim. Segundo, porque minha mulher [a editora Marta Garcia] segura a onda quando eu estou duro, o que acontece amiudadamente. Terceiro, porque eu estou com quase 70 anos. Vou fazer o que para ganhar dinheiro? Vou fazer o que eu sei: essa merda, literatura. Mesmo que não haja clima.

Como você vê essa onda conservadora?

Laura, minha filha de 18 anos, [as outras são Dora Garcia Moraes, 21, Ana Kehl de Moraes, 31] viu o resultado das eleições na televisão e chorava: “Vou passar quatro anos com esse machista no poder”. Daí eu disse: “Bem vinda ao clube, baby”. Em 1964 eu tinha 14 anos, em 1985 eu tinha 35. Vivi minha juventude toda embaixo de milico. Com amigo preso, torturado, fui pego também. Aí fui pra Paris.

Como foi essa experiência?

Fiquei lá de 1979 a 1980. Encontrei Julio Cortázar, eu com o endereço errado, meio bêbado, e ele aparece na minha frente. Foram 20 minutos de fã. (Risos.) Em Paris escrevi meu primeiro livro, “Tanto faz” (1981), que só saiu porque a censura já tinha afrouxado .

Em “Tanto faz” já surgia um narrador boêmio, andarilho, que mistura referências intelectuais com baixaria...

Eu sempre digo que todos os protagonistas são eu. O pessoal me pergunta: “Isso é da sua experiência?” Lógico que é. Eu vivi tudo isso, ou acordado ou dormindo. Ou devaneando. Mas, agora, esse narrador mudou. Tem novidades que meu personagem não consegue entender. Assim como eu. Em “Maior que o mundo” o Kabeto está sempre em choque. Ele diz: “Eu entendo homossexual, mas bissexual é muito pra mim.” Então os amigos jovens tiram sarro dele o tempo todo, dizem que é um dinossauro ético, dinossauro moral. Ele se dá conta que é um velho babaca, ultrapassado, antiquado.

Reflexões que vêm de trocas com gente mais jovem, imagino. Como suas filhas, por exemplo, veem a sua obra?

Normalmente elas entendem que há diferença entre as opiniões absurdas do narrador do livro e o autor, que no caso sou eu. Mas neste último já houve mais questionamentos, trechos do fluxo de consciência do Kabeto que para elas soaram machistas ou misóginos.

E qual a sua reação?

É a opinião delas, que eu respeito. Mas eu não vou me autocensurar. Sabe, eu me debatia com essa questão bem no começo, queria escrever umas coisas e ficava pensando no que os outros, no que meus pais, ainda vivos, iam achar. Mas não adianta. Se você for escrever com sinceridade, tem que cortar os laços. Na hora de escrever, escritor não pode ter pai, mãe, filha, mulher, papagaio. Escritor não tem família. Depois ele se entende com mundo.

Capa do livro "Maior que o mundo", de Reinaldo Moraes Foto: Reprodução
Capa do livro "Maior que o mundo", de Reinaldo Moraes Foto: Reprodução

Crítica: Resgate da fórmula de ‘Pornopopeia’ em uma narrativa longa demais

Juliana Cunha

“Maior que o mundo” é narrado em primeira pessoa por um homem de meia-idade que quer escrever um romance, que cita Bukowski, fala de seus casos com mulheres das quais nem lembra o nome, de drogas, de literatura, faz meia dúzia de referências eruditas, passeia pelo Baixo Augusta, frequenta sua fauna. Você abre a porta de um quarto assim e o que sobe é um cheirão de naftalina. Para piorar, o romance lembra demais “Pornopopeia” (2009), que, por sua vez, lembra demais “Tanto faz” (1981), ambos também de Reinaldo Moraes.

Você poderia cortar lotes de dez páginas de “Maior que o mundo” e acoplar em qualquer um desses dois livros anteriores sem que ninguém notasse. Como tentativa de atualização dos mesmos temas, entra um ou outro assunto mais atual, de tecnologia aos protestos de 2013, mas parece que nada disso realmente modifica o narrador, ou a narrativa.

O problema da literatura, no entanto, é o modo como alguns autores pegam materiais que não são grande coisa, dão um tratamento que também não parece nenhuma lapidação sofisticada e o resultado que emerge daí surpreende. Neste caso, o produto dessa alquimia estabanada não é tão interessante quanto o desses dois predecessores que mencionei, mas ainda é mágico ver como um discurso cansado, cheio de lugares-comuns que te fazem revirar os olhos em tédio e desespero, consegue se articular de uma forma envolvente. No fim, Reinaldo Moraes tem os mesmos defeitos de um Marcelo Mirisola, para citar um exemplo que provavelmente ofende a ambos, mas aqui simplesmente funciona.

O romance é narrado por esse homem (Cássio Adalberto, também conhecido como Kabeto) que você conhece inteiro logo nas primeiras linhas (é um tipo publicitário velhão do rock) que passeia por São Paulo falando sozinho em um gravadorzinho à pilha enquanto busca a frase perfeita para iniciar seu novo romance, que consiste nessa gravação infinita que ora lemos. O homem tem dúvidas formais do tipo “que voz narrativa devo usar em meu romance”, coisa que ele logo resolve por intuitivamente usar a primeira pessoa (faz mais de cem anos que estamos “intuitivamente” fazendo o mesmo). O homem é um pouco avesso às novas tecnologias, daí o radinho, e tem sonhos irreais e mais do que levemente misóginos envolvendo mulheres exóticas, interessantes e que o admiram. Como Reinaldo Moraes consegue transformar um material assim em algo que seja possível de se ler com algum prazer por mais de quatrocentas páginas em um longínquo dezembro de 2018 é a pergunta que não me sinto habilitada a responder neste momento.

Mas agora vem a parte que desanima: essas quatrocentas páginas são apenas o começo de uma trilogia que soma umas mil e duzentas e cujo segundo volume deve ser lançado no ano que vem. E essa mesma história vai gerar um filme, que por sinal foi pensado antes do livro. Por mais que eu seja uma entusiasta de “Pornopopeia” e que tenha me divertido com a leitura de “Maior que o mundo”, fico me perguntando se preciso de mais oitocentas páginas de egotrip confessional estilo Karl Ove beatnik a essa altura do campeonato. E nem preciso me perguntar se algo assim escrito por uma mulher sequer seria publicado por uma editora séria, ou resenhado como literatura séria.

* Juliana Cunha é jornalista e doutoranda do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.

Cotação: BOM