Cultura

Renovador do samba nos anos 1970, o Fundo de Quintal celebra com DVD os seus 45 anos

Unindo o pique dos novos integrantes à tradição dos fundadores Bira Presidente e sereno
Grupo de samba Fundo De Quintal Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Grupo de samba Fundo De Quintal Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Aos 84 anos, o carioca de Ramos Ubirajara Félix do Nascimento diz não ter do que reclamar da vida.

— Tudo em que eu botei a mão deu certo. Eu vou a qualquer lugar e é uma loucura. E olha que eu nem sou cantor! Tanto garoto bom aí... eu vou cantar pra quê? — pergunta-se o popular Bira, pandeirista apelidado de Presidente por ter liderado a fundação, em 1960, do bloco carnavalesco Cacique de Ramos — o qual, anos depois, daria origem ao grupo Fundo de Quintal.

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Bira Presidente, membro fundador e mais velho do grupo Fundo de Quintal Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Bira Presidente, membro fundador e mais velho do grupo Fundo de Quintal Foto: Leo Martins / Agência O Globo

Uma referência daquilo que se conhece como samba de raiz e som dos pagodes, o Fundo está em festa: no último dia 21, começou a gravar, em show para estimadas 55 mil pessoas, no Parque de Madureira, um DVD de comemoração dos 45 anos de carreira (a segunda parte será registrada em show no segundo semestre de 2022, em São Paulo).

Trata-se de um projeto com 45 músicas, dez delas inéditas, entre as quais “45 anos”, que será lançada nas plataformas de streaming na sexta-feira. O samba é uma auto-homenagem ao Fundo, composta por Sereno (de 81 anos, fundador do grupo junto com Bira e introdutor do tantã — um tambor de formato cilíndrico, da família do atabaque — no samba) e o seu filho, o produtor André Renato.

— É a história dessa coisa gostosa, dessa brincadeira que deu certo das rodas de samba às quartas-feiras na quadra do Cacique de Ramos — conta Sereno. — Além da roda de samba, tinha uma pelada, da qual a gente participava, e a gente convidava os boleiros [estrelas do futebol] para jogar. Eles chegavam, cada um com cada carrão tremendo, era um querendo aparecer mais que o outro... e assim na roda acabavam aparecendo também mulheres lindas, maravilhosas.

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Mas de nada adiantaria a presença de musas e boleiros se o samba não fosse no mínimo notável. E uma revolução musical estava sendo feita nos anos 1970, na quadra do Cacique, por Sereno, Bira e Ubirany (irmão de Bira e criador do repique de mão, instrumento que deu mais leveza ao samba), fundadores do Fundo de Quintal.

— Naquela época não tinha essa parafernália de microfone, fone de ouvido... a gente dizia que era na base da unha seca. O surdo e o tarol faziam muito barulho, e a gente não se ouvia, não ouvia violão, não ouvia a voz... aí a gente resolveu dar um chega para lá neles — explica Sereno. — Eu vim com o tantã, o Ubirany com o repique de mão, aquilo foi do agrado total e a brincadeira começou a ficar séria.

Em 1978, Beth Carvalho foi ao Cacique, gostou do que ouviu e chamou aquela turma para participar do LP “De pé no chão”, um marco do samba. Em 1980, o grupo gravou o LP “Samba é no fundo de quintal”, o primeiro de uma série de clássicos que inclui “Nos pagodes da vida” (1983), “Seja sambista também” (1984) e “O mapa da mina” (1986).

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Berço de Jorge Aragão e cia.

Modernizador da sonoridade do velho partido-alto, o Fundo de Quintal também se notabilizou pelas carreiras solo de seus ex-integrantes: talentos como os de Almir Guineto (que levou o banjo para o samba), Arlindo Cruz, Jorge Aragão e Sombrinha.

— O samba do Fundo de Quintal é uma engrenagem. Sai um dente, a gente bota outro — metaforiza Sereno. — E os que vão chegando, a gente bota para correr com a gente.

Nos anos 1980, o grupo oficializou como integrante o músico de apoio Ademir Batera — até hoje, uma peça indispensável do Fundo de Quintal e um show à parte das suas apresentações.

— A gente já estava há algum tempo na pista e precisava de uma direção melhor para o ritmo, mas não queria colocar um surdo — relata Sereno. — Falei que uma bateria era bem melhor, e que eu tinha o cara certo, que tocava com a Leci Brandão. Aí um dia encontrei o Ademir e falei: “Negão, vamos lá para o Fundo de Quintal?” Ele não pensou duas vezes e depois nós efetivamos ele, para ninguém levar embora.

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Perda irreparável

Além dos fundadores Bira Presidente e Sereno e do decano Ademir, o Fundo de Quintal conta, há pelo menos cinco anos, com o reforço dos integrantes Marcio Alexandre (cavaquinho) e Junior Itaguaí (banjo). O único dente da engrenagem que o grupo julgou insubstituível foi Ubirany, que morreu há um ano, de Covid-19. Bira viria perder logo depois, em maio, também para a Covid, o seu outro irmão, Ubiracy.

— Meus irmãos eram deuses para mim, mais novos que eu, mas os maiores incentivadores de tudo que aconteceu na minha vida. Eu senti a falta deles no show de Madureira, mas tive um remédio, que foi o público — emociona-se Bira, que, assim como Ubirany e Ubiracy, é filho de Domingos, boêmio que frequentava os encontros musicais de mestres como Donga, Pixinguinha e João da Baiana. — Meu pai virava noites nas casas dessa turma. E, quando voltava de manhã, ele tomava banho e ia para o serviço. Meu pai nos deu de tudo do bom e do melhor.

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A escolha do Parque Madureira para a gravação do DVD — e não a tradicional quadra do Cacique de Ramos, na Rua Uranos, em Olaria — foi feita, segundo Sereno, “porque era o lugar onde a gente achava que cabia bastante gente, para todo mundo sair dali feliz”. Muita animação — e poucas máscaras — foram vistas entre o público durante a apresentação, na qual o Fundo de Quintal tocou 23 das 45 músicas do projeto. Mas o fundador do grupo garante que todos os cuidados foram tomados.

— Eu e Bira somos do grupo de risco, qualquer vacilo nosso poderia botar tudo a perder. Mas graças a Deus agora a vida está clareando. Mesmo com a crise pela qual o país está passando, nós vamos levando. A coisa é conforme diz o meu amigo (o sambista) Marçal: vamos comendo pelas beiradas. Enquanto Papai do Céu deixar, vamos aproveitando — diz Sereno, que agora aguarda a conclusão do DVD em São Paulo. — A dedicação e o carinho que eles têm lá pelo Fundo de Quintal são muito grandes. O público nos abraçou de uma tal forma que não podemos deixar de gravar também em São Paulo.

A grande questão hoje, para os octogenários fundadores do Fundo de Quintal, é como manter o pique ao lado do grupo nas apresentações, com as quais eles pretendem seguir 2022 adentro.

— Até hoje eu pratico esportes. E tenho um personal trainer, que é para eu não abusar, porque eu sou acintoso! — gaba-se Bira Presidente, que, de vez em quando, arrisca “socialmente” uma dose de vinho do Porto.

— Pra mim, só Deus mesmo! — brinca Sereno, que não dispensa uma cerveja no terraço da casa do filho, em Realengo (onde, por sinal, os dois compuseram o samba “45 anos”). — A gente conta mesmo é com o pique dos mais novos, o Itaguaí e o Marcio, para segurar o samba no palco.