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Cultura

Resenha: Eliana Alves Cruz narra a história de um Brasil preso às injustiças

Narrador misterioso revela os ‘desejos inconfessáveis’ da sociedade escravista colonial
Novo livro de Eliana Alves Cruz, autora de 'O crime do Cais do Valongo' Foto: Reprodução
Novo livro de Eliana Alves Cruz, autora de 'O crime do Cais do Valongo' Foto: Reprodução

Que tal a ideia de um narrador misterioso e sem nome, mas altamente bem informado? Este é um dos caminhos, e dos mais instigantes, do novo romance da escritora carioca Eliana Alves Cruz, “Nada digo de ti, que em ti não veja” , que acaba de ser publicado pela editora Pallas. Dedicada a narrativas históricas, com precisão de detalhes, na trilha de sucessos que já lhe renderam prêmios e uma iniciada consagração na carreira literária, a autora volta agora à cena com mais uma história bem urdida e intrigada, potencializada pela temática da escravidão e de personagens fortes e enigmáticos. Com este novo

livro, Eliana se coloca entre as grandes ficcionistas brasileiras da atualidade, onde se destacam a veterana Conceição Evaristo e festejada Ana Maria Gonçalves.

São dela ainda o premiado “Água de barrela”, onde reconstitui a centenária saga da ancestralidade de sua família africana, a partir do Recôncavo Baiano, e “O crime do cais do Valongo”, sobre o misterioso assassinato de um poderoso homem público e de negócios, bem no coração da região hoje conhecida como a Pequena África.

“Nada digo de ti, que em ti não veja”, ao contrário dos seus dois romances anteriores, se passa entre a Minas Gerais, da rica exploração aurífera pela Coroa portuguesa, e a portentosa cidade do Rio de Janeiro, do final do século 18. Aí a ganância pelo comércio da escravidão e pelo cobiçado “caminho do ouro”, compõem o cenário desse enredo que, no entanto, vai relevar a podridão, os privilégios, as injustiças, e as crueldades de uma sociedade imersa de corpo e alma nas milionárias negociatas do período do Brasil-colônia. Destacam-se nesse contexto as figuras de alguns personagens centrais, dentre outros também relevantes: a do moço Felipe, da estirpe poderosa dos Gama, o Frei Alexandre Saldanha Sardinha, alto servidor do Santo Ofício, o escravizado Zé Savalú, e da negra Vitória, na verdade, uma jimbanda, dona de “vasta cabeleira crespa”, mas outrora nascido menino no Congo, como Kiluanji Ngonga. Entre as mulheres, a noiva virtuosa Sianinha, na sua comovente transfiguração, de sinhá cheia de modos e chiliques, para a “mendiga nubente”, Branca Muniz, espécie de matrona, das mais frias e cruéis, e a mucama Quitéria, que também cumpre papel preponderante no desenrolar da narrativa.

Meticuloso contexto narrativo

Não é a primeira vez que Eliana Alves Cruz nos brinda com uma narrativa tão envolvente e pujante. Como nos seus outros livros, a descrição das imagens, o enquadramento das cenas, nos leva a crer no meticuloso desenho para compor na ficção o perfil de personagens talvez reais, de carne e osso, e que foram

destacadas figuras da história do país. Porém, em “Nada digo de ti, que em ti não veja” não é diferente disso. Balthazar Gama seria, por exemplo, aleatoriamente, o Borba Gato (1649-1718), o famoso genocida e bandeirante? O Frei Alexandre Saldanha Sardinha da trama, não lembraria levemente a caricatura de ninguém menos do que o Bispo Sardinha (1496-1556), o que foi devorado pelos índios Caetés? É algo a se saber.

Com base em cuidadosa pesquisa, o ambiente colonial é descrito com precisão pela romancista, com os seus casarios imponentes, as vestimentas coloridas, a cheirosa culinária, o jeito e trejeito do falar arrastado do escravizado e da nobreza. O misterioso narrador, tido e havido como confesso “bisbilhoteiro” ou “fofoqueiro dos mais terríveis”, nos ajuda a “ver” os casarões por dentro, os costumes e as intimidades de sua gente, bem como a farta riqueza da vida burguesa construída à base do sangue do negro e da negra escravizados e pelo escambo do usufruto precioso arrancado da profundeza das minas.

Mas isto não é tudo. O melhor tempero da trama vai estar nas revelações dos chamados “instintos secretos e desejos inconfessáveis” de Vitória, sedenta sodomita, a Geni da época, que redime e ao mesmo tempo é execrada pela sociedade, que teme nela o seu olhar e a sua língua, além das mandingas que pratica. Neste ponto, Vitória chama mais atenção do que todos os outros pela reveladora “inversão dos papéis”, dada as suas muitas vidas, e por “ser diferente”. O seu envolvimento e paixão pelo “filho-de-algo”, o sinhozim imaturo, a sedução dos seus cabelos volumosos, como a “copa de figueira”, ou pelo perfume da dama-da-noite, o preferido, impõe a este livro um toque de ousadia, e de ótimo mistério, e mesmo de requinte narrativo, salvo engano, talvez descrito pela primeira vez numa obra literária de autoria negra. O final, todavia, é surpreendente.

Se há algo que cada vez mais prende e fascina nos textos de Eliana, é este olhar delicado e dedicado aos excluídos, sobretudo aos escravizados e às mulheres pretas, dando-lhes poder e voz, seja na alegria ou na dor, ponte, certamente, que une algo ligado à sua origem ou ancestralidade. Aliado a tudo isso, é preciso destacar o belo texto, cada vez mais conciso e refinado, cirurgicamente envolvente, como nas descrições de tipos e de fachadas de

prédios, ou de um quilombo na mata. Com esta mão certeira a autora tem moldado a sua trajetória nas letras, e pavimentado, brilhantemente, as suas escritas-caminhos.

“Nada digo de ti, que em ti não veja”

Autora: Eliana Alves Cruz

Editora: Pallas

Páginas: 204

Preço: R$ 43,00

Cotação: Ótimo