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Cultura

Resenha: Louise Glück é uma Nobel de Literatura atenta aos mistérios do tempo

Reunião dos três livros mais recentes da poeta americana entrelaça memória e presente em mundos habitados por pessoas e seres imaginários
A poeta americana e Nobel de Literatura em 2020 Louise Glück Foto: Divulgação/Katherine Wolkoff
A poeta americana e Nobel de Literatura em 2020 Louise Glück Foto: Divulgação/Katherine Wolkoff

Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 2020, Louise Glück assegurou para sua poesia uma repercussão muito maior do que conhecia até então. A honraria concedida pela Academia Sueca, contudo, é apenas a última em uma longa lista de prêmios recebidos pela americana, que vem publicando regularmente desde o fim da década de 1960, e também lançou dois livros de ensaios sobre poesia, em 1994 e 2017. “Poemas 2006-2014” reúne os três livros mais recentes de Glück: “Averno”, de 2006, “Uma vida no interior”, de 2009, e “Noite fiel e virtuosa”, de 2014.

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O primeiro faz referência a um local na Itália, a “dez milhas a oeste de Nápoles”, considerado pelos antigos romanos a entrada para “o outro mundo”. Partindo dessa moldura, Glück revisita o mito de Perséfone, a jovem raptada por Hades. O segundo livro é dedicado à descrição poética de uma pequena cidade no campo, lidando com os habitantes e suas relações, com os ciclos da natureza, as paisagens e os afetos. “Noite fiel e virtuosa”, além de lidar com o envelhecimento (a “noite” que chega), é também baseado em uma sugestiva cena da infância: o irmão mais velho lê as lendas do rei Arthur e o menino — que muitos anos depois escreverá os poemas que lemos — entendia “noite” em vez de “cavaleiro”, confundindo as pronúncias em inglês de night e knight , e transformando “o cavaleiro fiel e virtuoso” na “noite fiel e virtuosa”.

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Glück busca criar, em sua poesia, mundos imaginários amplos e porosos o suficiente para que pessoas reais, estranhos e íntimos, possam encontrar espaço dentro deles.

Os três livros a que agora temos acesso lidam com o problema do tempo, mas em Glück o ambiente temporal é tratado espacialmente, como um campo onde as memórias mais antigas e as mais novas se relacionam. “Levei toda a minha vida para chegar aqui”, escreve ela no poema “Meia-noite”: “Uma força misteriosa me ergueu por cima do mundo/ impossibilitando toda ação,/ o que tornou o pensamento não só possível, como ilimitado”. Em primeiro plano, dominante, encontramos eventos do passado distante; no fundo, de forma sutil, encontramos o presente de forma enviesada, borrada.

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As distinções entre o passado e o presente, entre o real e o inventado, são transformadas em matéria da poesia, assim como a distinção entre a experiência de ler (ou escrever) o livro e a de se encontrar dentro dele: “Ao olhar para um corpo, vê-se uma história./ Quando esse corpo não é mais olhado,/ a história que tentava contar está perdida” (de “Caminhada noturna”, do livro “Uma vida no interior”).

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Muitos dos poemas de Glück falam da natureza como uma paisagem compartilhada pela infância e pela maturidade, ao mesmo tempo em que enfatizam sua dimensão de trabalho e sustento. O tempo cotidiano da lida na terra é articulado com os tempos suspensos da mitologia e das esferas celestiais, o que permite à poeta a construção de pontos de fuga sólidos, ainda que distantes — o amor, a morte, o mito, o além. Frequentemente, os poemas são tomados por entidades que não falam, mas comunicam algo, como o “silêncio” ou o “espírito”, entidades sempre envolvidas em certas estratégias de recuperação do tempo perdido: a evocação de odores, rituais familiares, paisagens, conversas, viagens. “O que você fez com seu corpo, pergunta o silêncio dela./Nós o confiamos a você e veja só o que fez,/você abusou”.

A poesia de Glück é ao mesmo tempo íntima e cósmica, recorrendo à mitologia grega para falar da vida em comunidade, ou à fabricação de compotas para falar da finitude da vida. Por trás das vozes, das cenas e das paisagens, existe uma atenção permanente ao maior dos mistérios — o mesmo tempo que amadurece os figos, dissolve as pessoas.

Kelvin Falcão Klein é é professor da Escola de Letras da UniRio