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Máximas e manias de Gilberto Braga

Brincava que só trabalhava porque era preciso, afirmava que o melhor de viajar era voltar para casa e dizia o que pensava sem ser solicitado, conta irmã do autor
Gilberto Braga em seu escritório, 2001 Foto: Ana Branco / O Globo
Gilberto Braga em seu escritório, 2001 Foto: Ana Branco / O Globo

Neste primeiro de novembro, Dia de Todos os Santos, faz um ano que comemoramos, num grupo muito pequeno, o último aniversário do Gilberto, na nova casa de Angra dos Reis. Tudo planejado por meu cunhado, Edgar Moura Brasil, que produziu e decorou um lugar de sonhos. Tudo lindo, confortável, aconchegante.

Gilberto seguiu sua rotina preferida. Tomava café no quarto, assistia a dois ou três filmes por dia, descia para almoçar e jantar conosco, deliciando-se com a comida e as sobremesas. Bebia Coca-Cola ou no máximo uma cerveja. Conversávamos, ríamos e depois do jantar cantávamos em volta da mesa. Alguma música americana, mas principalmente brasileira, com destaque para marchinhas, samba e samba-canção. Tinha boa voz e era extremamente afinado.

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O renomado autor de novelas, por vezes considerado um gênio da teledramaturgia, era um carioca apaixonado por sua cidade e por seu país.

Com todo o seu cosmopolitismo, sua cultura, seu francês impecável, sua intimidade com Paris, Nova York e Londres, dizia que o melhor de viajar era voltar para casa no Arpoador.

Sua personalidade marcante, desenhada já na infância, mostrava que era uma pessoa cheia de máximas, como o Marquês de Maricá, e manias, como cantou Dolores Duran em “Dentre as manias que eu tenho”.

Minha tentativa neste texto é provocar o que Artur Xexéo chamava de uma fita-banana, que possa ser completada pelos que conheceram Gilberto de perto. Certamente muitos o fariam bem melhor do que eu…

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Dentre afirmações que lhe pareciam incontestáveis, tem as que diziam que: as crianças do cinema americano já nascem bons atores e atrizes; os brasileiros inteligentes parecem ser de esquerda; já os franceses são mais de direita. Estética é fundamental: a beleza das pessoas, da arte, dos ambientes. Dizia que o bom gosto podia não ser bege ou cinza mas que quem inventou as cores rosa-choque e verde limão não gostava de ver a mulher bem vestida, além do que mulher de mais de trinta anos não podia usar decote, ficava horrorosa.

Afirmava que as mulheres são mais interessantes que os homens. Era só testar. Em cada dez casais, elas ganham em oito. Prezava a arte de conversar, como dizia Molière, e dizia que inteligência a gente percebe em uma hora de papo.

O que contava nas relações pessoais era o afeto e a empatia, não os laços consanguíneos.

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Certamente era um gourmet, que achava que chocolate não é doce. Doce era suspiro, ambrosia, doce de leite, caramelo do Fauchon. E só comia carne mal passada.

Comentava: “Só posso escrever sobre o universo que conheço. Pensei em fazer uma história com um jogador de futebol, mas não sei o que eles conversam no vestiário, como sei do que falam os empregados na cozinha, os granfinos nos salões.”

Brincava que só trabalhava porque era preciso e adorava o poema de Ascenso Ferreira:

“Hora de comer, comer!

Hora de dormir, dormir!

Hora de vadiar, vadiar!

Hora de trabalhar?

Pernas pro ar, que ninguém é de ferro!”

Gilberto não era um filósofo, mas um homem cheio de certezas e opiniões fortes, como deixou transparecer nas suas novelas e minisséries, sem maniqueísmo. Não teve engajamento político, nem se interessava muito pelo tema, mas condenou todos os preconceitos, o racismo, a homofobia, a discriminação de gênero ou de classe social.

Era uma pessoa metódica, o que garantia a disciplina que sua profissão demandava. Cada novela exigia pelo menos um ano de trabalho duro, sem folga. Antes de começar a fazer a sinopse, gostava de se isolar, muitas vezes num hotel, para pensar no tema que seria debatido e sustentava a história que ia contar. Foi assim que escolheu abordar a questão da vingança, da competição, da ambição desmedida, e da pergunta que não quer calar: vale a pena ser honesto no Brasil?

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Tinha por hábito dar opinião, mesmo quando nada lhe era perguntado. Era dessas pessoas, dizia o que pensava “na tampa”, muitas vezes constrangendo o interlocutor. Gostava do que se chama em francês “épater le bourgeois”, chocar o ouvinte.

Ia sempre ao teatro procurar bons atores e atrizes, muitas vezes em peças que não lhe interessavam. Quando lhe perguntavam o que achou, era capaz de dizer que não gostou nada mas que era possível que fizesse sucesso, apesar de ele achar chatíssima. Mas se gostasse da peça ou da atuação de alguém, desdobrava-se em elogios e convites.

O autor de novelas Gilberto Braga, em 1981 Foto: Adir Mera / Agência O Globo
O autor de novelas Gilberto Braga, em 1981 Foto: Adir Mera / Agência O Globo

Adorava seu período de férias, intercalado entre viagens internacionais e ficar em casa arrumando a videoteca, o escritório, fazendo álbum de fotografia, lista de tudo que era possível, dando jantares, indo à praia, almoçando na cozinha com os empregados, chamados de “funcionários”. Sempre se fez amigo de quem trabalhava na casa ou participava da produção de suas novelas. Tinha mania de dar gorjetas altas em todos os lugares que frequentava. Era o ídolo de manobreiros, garagistas e garçons.

Gostava muito de dar presentes de aniversário e escolhia todos com cuidado. Tinha uma estante só para isso. Na prateleira de baixo ficavam os daquele mês. Fui sempre privilegiada com roupas e bolsas lindas, apesar de ser do mesmo mês de dois dos seus amores, Malu Mader e Dennis Carvalho.

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As viagens eram absolutamente planejadas, com uma agenda marcada por reservas de restaurantes, encontro com amigos, compra de ingressos para o teatro, musicais e shows. A mala era preparada cirurgicamente depois de fazer uma lista de roupas que chamava de rol, como se faz o rol para a lavanderia. Encomendava livros e filmes que os aguardavam na chegada. Gostava muito de biografias, principalmente de gente do cinema e do teatro, autores, diretores, atores.

Em Paris, no dia da chegada e da saída, ele e Edgar iam sempre ao mesmo restaurante, o Entrécôte, comer o melhor bife com fritas do mundo, como dizia.

Gilberto tinha o perfil de um professor. Era didático e gostava de ensinar, fosse cinema, mostrando um filme que a pessoa não conhecia, até regras de etiqueta. Cultivava o passado. Tinha excelente memória de fatos da infância na Tijuca, da juventude em Copacabana. Sabia o nome de todos os seus professores do primário e do colégio Pedro II.

De certa forma, como irmã mais nova, fui sua aluna. Tomara que tenha aprendido bem as lições de música, cinema, teatro, moda, etiqueta, ética e principalmente de amor à vida.

Rosa Maria Araújo é historiadora e irmã de Gilberto Braga