Cultura TV

Análise: 'A amiga genial' narra amizade nos limites entre a sororidade e a rivalidade

Saga de Elena Ferrante mostra que não só de anti-heróis atormentados se fazem boas histórias
As amigas Lila e Lenu são as protagonistas de "A amiga genial", estreia da HBO Foto: Divulgação
As amigas Lila e Lenu são as protagonistas de "A amiga genial", estreia da HBO Foto: Divulgação

RIO - Quem conseguiu passar os últimos anos alheio à misteriosa existência de Elena Ferrante pode ter dificuldades para entender por que uma série de TV sobre duas garotinhas gera tanta expectativa. Um ponto elementar a ser dito é que não se costumam fazer séries sobre garotinhas, não com a seriedade e ambição de “A amiga genial”.

A chamada “era de ouro da televisão” das últimas décadas foi construída em cima de protagonistas masculinos complexos. O pioneiro foi justamente um descendente da Itália de Lila e Lenu, o mafioso Tony Soprano. Em uma lista que figuram ainda o Walter White de “Breaking bad” e o Don Draper de “Mad men”, esses eram homens da ação. Humanos, mas capazes de atos atrozes, que  precisavam lidar com o próprio mal que botavam no mundo.

Em “A amiga genial”, o mal já está posto no mundo, na banalidade da violência do bairro em que Lila e Lenu crescem — onde meninas podem ser arremessadas da janela pelo pai se quisessem estudar ou estupradas pelos vizinhos se aceitassem passear no carro deles. O mundo em que meninas dos anos 50 cresciam lhes dava pouca margem para agir sobre ele.

É por isso que os ares rebeldes — ou mesmo maldosos — de Lila vão parecer tão atraentes a Lenu. Em um universo que empurra as meninas para a domesticidade e a previsibilidade, cada ato de Lila é uma pequena revolução. Por isso, jogar uma boneca no buraco ou decidir atravessar o túnel que separa o bairro do restante da cidade ganham tons épicos. Lila cria pequenos terremotos, reconfigurando o mundo ao redor.

Desde a infância em busca de validação, Lenu percebe por meio de Lila que não precisa se contentar apenas em ser a mais aplicada aluna do bairro. Suas ambições podem ser maiores. É a relação com a amiga, sempre testando os limites entre a sororidade e a rivalidade, que vai fazer com que ela passe uma vida tentando superar não só as fronteiras geográficas, mas também os limites invisíveis do bairro, transpondo os muros que classe e gênero lhe impuseram. Ela eventualmente consegue isso, por meio do acúmulo de capital cultural, algo narrado do primário à aposentadoria em detalhes.

Mas Lila está para Lenu como Capitu está para Bentinho: como só sabemos dela em segunda mão, pelo olhar turvo dos apaixonados, nunca saberemos se ela é tão brilhante ou tão cruel quanto a amiga é capaz de pintá-la. A forma como a narradora descreve a amiga diz mais sobre si mesma do que sobre o seu objeto.

Ao depositar na amiga o ideário da mulher transgressora, capaz de subverter e dominar o bairro, Lenu encontra a desculpa perfeita para justificar suas ações que, como vamos ver ao longo da saga, também fogem do que lhe era esperado. A impressão de que a amiga está sempre um passo à frente, de que ela tem total domínio do mundo em que vivem, lhe serve como provocação para ir atrás dos seus desejos, que deveriam morrer sufocados entre vielas de Nápoles.

A Lila com quem travamos contato é uma abstração dos desejos de Lenu. Mas, em certos momentos, conseguimos enxergá-la despida dos ares míticos que a amiga lhe dá. O que vemos é, sim, uma moça genial, mas massacrada pela única vida que lhe foi permitida ter. É uma história demasiado comum, uma história que não era para ser contada, e sim silenciada, como vemos que a própria tenta fazer  já na velhice, ao “desaparecer”. Que bom que havia outra mulher ao lado para impedir isso.