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Com coronavírus, TV tem aumento de audiência e aposta no improviso como solução

Mesmo com limitações, meio experimenta aumento de horas de consumo
Com o recentemente recuperado da Covid-19 Tom Hanks, 'Saturday night live' teve edição histórica com participações de casa Foto: NBC / NBC
Com o recentemente recuperado da Covid-19 Tom Hanks, 'Saturday night live' teve edição histórica com participações de casa Foto: NBC / NBC

Primeiro, as plateias foram reduzidas, até desaparecem por completo e os próprios programas de auditório precisarem parar. No lugar, entraram mais horas de jornalismo, e, definitivamente, nunca se viu tanta notícia. Enquanto isso, as intrigas dos folhetins se congelaram no tempo e, em substituição, revemos histórias que eram velhas conhecidas. Porém, ainda encontramos motivo para rir: mesmo sem figurino ou cenário, comediantes fizeram piada com o “novo normal” imposto desde que a pandemia do coronavírus virou o mundo de cabeça para baixo. Mas talvez nenhum momento tenha sido tão sintomático quanto no domingo passado, quando, diante de um calendário esportivo suspenso, vibramos com o pentacampeonato da Seleção como se fosse a primeira vez. E, por uma hora e meia, fomos felizes de novo.

Esses são apenas alguns exemplos de tudo que precisou mudar na TV desde o começo das medidas de isolamento social contra a Covid-19. Para proteger a vida humana, muito do que fazia parte da televisão como a conhecemos desde sempre precisou ser revisto. Mesmo com todas as restrições de equipes, o meio se mostrou mais necessário do que nunca. Segundo dados do Ibope, na semana de 6 a 12 de abril, o tempo médio que cada pessoa passou assistindo à TV diariamente foi de 7h54, um aumento de 1h20 em relação à primeira semana de março, antes da pandemia. Entre as 20 maiores audiências de TV dos últimos cinco anos, 13 foram registradas em março, no início das medidas de distanciamento.

— Neste momento sem paralelo, a TV reforçou seu papel de companhia para muitas pessoas. Enquanto a média diária mundial de consumo antes da pandemia era de 2h55, no Brasil ela já era mais do que o dobro. Continuamos a monitorar o comportamento da população para entender quais serão os reflexos a longo prazo — aponta Melissa Vogel , CEO da Kantar IBOPE Media.

Com o prolongamento da quarentena, também surgem novas medidas além do uso de reprises e do aumento das horas dedicadas ao jornalismo. Na TV Globo, a mais recente foi a decisão de retomar o “Encontro com Fátima Bernardes” , que, a partir de segunda-feira, também contará com a participação de Ana Maria Braga , de casa. Outras propostas incluem uma live multiplataforma com Ivete Sangalo e a apresentação, no "Domingão do Faustão" , de parte da live que Roberto Carlos realiza neste domingo de seu estúdio na Urca, no dia do seu aniversário. Segundo dados do Painel Nacional de Televisão (PNT), a emissora carioca passou de 13 para 15 pontos durante todo o dia (das 6h às 5h59), um crescimento de 15% em relação à média de 2020, com um incremento de 6,3 milhões de pessoas no alcance da TV no período. Na faixa das 11 horas consecutivas ao vivo (das 4h às 15h), o crescimento foi de 22% em relação à média do ano.

— Agora, passado um mês do início do isolamento, entendemos que as pessoas estão se adaptando às novas rotinas e têm novas preocupações — diz Carlos Henrique Schroder, diretor de Criação e Produção de Conteúdo da Globo. — Por isso, Fátima Bernardes volta para o estúdio do "Encontro" nas manhãs, em um novo modelo, com equipe muito reduzida, fazendo entrevistas por vídeo com os convidados.  E estamos oferecendo novos formatos de entretenimento, como a exibição do megafestival de música One World em nossas diversas plataformas. Não foram decisões fáceis nem são definitivas. Vamos aprendendo e reavaliando dia a dia nossas ofertas para o público, que também vai se adaptando ao novo cenário, desafiador para todos.

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Embora o brasileiro sempre tenha tido uma relação especial com a TV, as mesmas limitações se impõem ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, um momento já histórico foi a transmissão do “Saturday night live” de 11 de abril. No ar desde 1975, o programa de esquetes é um celeiro de talentos que tradicionalmente recebe os principais nomes da música, do cinema e da política em seu auditório no Rockefeller Center, em Nova York — cidade em que o número de mortes por Covid-19 já ultrapassa a marca de 10 mil. Diante disso, Tom Hanks , que se convalesce do vírus, foi o apresentador convidado, direto da cozinha de sua casa.

“Bem, vai parecer um pouco diferente do que você estava acostumado? Sim. Vai ser estranho ver esquetes sem grandes cenários e caracterizações? Sim. Mas vai fazer você rir? Bem, é o 'SNL', vai ter algumas coisas boas, talvez uma ou duas péssimas”, brincou Hanks.

O movimento não é isolado: Jimmy Fallon e Stephen Colbert estão entre os que levaram seus programas para dentro de casa — o último, com direito a uma entrada triunfal de sua banheira. Outros dois populares apresentadores de talk show, Seth Meyers e John Oliver , ambos sem terno e de casa, desabafaram em uma videoconferência sobre o alívio de ter filhos pequenos demais para entenderem a gravidade do que estava acontecendo. Também em quarentena, de moletom e sentada em posição de lótus em sua espaçosa sala, Ellen DeGeneres discutiu ações contra o vírus com convidados a distância como o governador da Califórnia, Gavin Newsom. E enquanto revíamos o Penta, a TV alemã transmitia aquilo que nenhum brasileiro quer ver de novo: a Copa do Brasil em 2014.

Nos Estados Unidos, a pandemia chegou enquanto empresas tradicionais de TV se preparavam para entrar na "guerra do streaming", lançando suas próprias plataformas de conteúdo. A NBC esperava estrear o seu serviço de streaming, Peacock, junto com a Olimpíada de Tóquio, canceladada diante da pandemia. Infectado com a Covid-19 em março, o CEO da NBCUniversal, Jeff Shell, anunciou que a estreia da plataforma está confirmada para 15 de julho no país, mesmo sem o chamariz da programação esportiva.

"Nós estamos trabalhando para retomar as atividades assim que possível, mas claro que não enquanto não for seguro", afirmou Shell em um e-mail a funcionários obtido pelo "Los Angeles Times" . Além de produções de TV e cinema paradas, o conglomerado de mídia também precisou fechar seus parques temáticos.

Stephen Colbert faz vídeo da banheira de casa: em quarentena, apresentadores no exterior e no Brasil apostam no improviso Foto: Divulgação
Stephen Colbert faz vídeo da banheira de casa: em quarentena, apresentadores no exterior e no Brasil apostam no improviso Foto: Divulgação

Por aqui, Gregório Duvivier apresenta o "Greg News" , da HBO, da casa de sua mãe. E Fábio Porchat , que teve que pausar as gravações do programa do GNT “Que história é essa, Porchat?” , lançou no Instagram a live “Que história é essa, vovó?” , numa iniciativa para motivar idosos confinados em casa, com participações que incluem Mauricio de Sousa, 84, Aracy Balabanian, 80 e Gilberto Gil, 77.

— O que as pessoas estão fazendo é: já que não temos a superprodução, vamos fazer propositalmente de forma tosca para mostrar que estamos tentando. Como não posso fazer com a produção mega, faço com nada de produção e brinco com isso — afirma Porchat.

O quadro dele faz parte das iniciativas do Porta dos Fundos . Até agora, a produtora de humor contabiliza 8 milhões de visualizações em seus conteúdos on-line sobre a quarentena. Somente no Instagram, o crescimento é de 285% em relação ao período anterior ao isolamento social.

Marcelo Adnet recorreu ao streaming. Integrante do “Fora de hora” , outra atração pausada da Globo, o comediante estreou no Globoplay o miniprograma “Sinta-se em casa” , espécie de diário da quarentena que, com vídeos curtos, comenta os acontecimentos do dia anterior.

— O humor passa por uma reinvenção, e ele sobrevive bem, porque não precisa de muita produção como o drama. Já que o humor é exagero, a gente embarca mesmo quando ele é feito fora de um ambiente controlado — considera Adnet.

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De fato, apostar no improviso não é uma opção para séries e novelas, que pararam gravações por tempo indeterminado. Por ora, autores seguem escrevendo de casa e refletindo sobre o impacto do vírus. Na série médica da TV Globo “Sob pressão” , há a intenção de  incluir o coronavírus na trama. Já Manuela Dias , autora da novela das 21h, “Amor de mãe” , pretende comentar o assunto através de Davi, o ambientalista vivido por Vladmir Brichta, que falará sobre uma “possibilidade de pandemia”.

— Pensei muito sobre se deixaria a Covid-19 entrar na novela. Por um lado, existe uma curiosidade de como os personagens se virariam na quarentena, mas acho que o vírus iria sequestrar a novela. Em vez de procurar Domênico, Lurdes estaria trancada tentando não pegar o coronavírus — pondera Manuela.

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Para o professor de Comunicação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) João Martins Ladeira , o coronavírus acelerou mudanças que já atravessavam as mídias, como a maior atenção ao streaming e a necessidade de repensar modelos de negócio.

— É curioso observar programas de redes de televisão adotarem uma estética que mais se assemelha às produções típicas de canais do YouTube. Mas essa é uma transformação pontual, que pode ser revertida assim que as limitações de convivência social forem suspensas. O que talvez importe é a transformação em curso no audiovisual, que passa pela proliferação das plataformas de streaming como alternativa indispensável.

A avaliação de Schroder sobre o cenário é semelhante:

— Não acreditamos que seja a TV se aproximando da linguagem da internet. Até porque a própria internet tem se profissionalizado ao longo dos anos. O que acreditamos é que a linguagem audiovisual se complementa em várias plataformas e esse é um caminho sem volta.