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Cultura TV

Em 'Sex/Life', coordenadora de intimidade 'coreografa' cenas de sexo e evita abusos no set

Profissionais como Casey Hudecki viram figuras essenciais em países como EUA; no Brasil, função ainda inexiste
Cena de Sex/life, da Netflix Foto: Divulgação/NETFLIX
Cena de Sex/life, da Netflix Foto: Divulgação/NETFLIX

O set da série “Sex/Life” , em Toronto, no Canadá, está quase vazio para a gravação da primeira cena do terceiro episódio. A atriz Sarah Shahi, que interpreta Billie, e o ator Adam Demos, o Brad, entram no estúdio e, quando começam a tirar os roupões, os poucos presentes viram de costas. Eles só voltam a olhar para os artistas depois que os dois já estão em suas posições, dentro do carro, para rodar uma das cenas de sexo mais quentes das dezenas que há no seriado. Quando a cena acaba, Sarah e Adam colocam os roupões e, só depois disso, uma imensa turma que ficou de fora volta para o estúdio.

Quem conta os pormenores desta sequência é Casey Hudecki, coordenadora de intimidade que esteve na gravação de todas as cenas eróticas desse sucesso da Netflix que ocupa o top 10 Brasil há algumas semanas.

— Todo mundo tem uma imagem diferente na cabeça sobre o que uma cena “quente” poderia ser. — diz a canadense Casey, que é atriz, coreógrafa de cenas de luta e coordenadora de dublês, e também trabalhou com intimidade em “The Handmaid’s tale”, “American gods” e “Mrs. America”. — Então, converso com o diretor e pergunto: “Quanta nudez você precisa? Que posições imagina?” Depois, falo com os atores: “Isso é o que queremos. Como se sentem?” Entramos em muitos detalhes, porque artistas tendem a dizer “sim” (para tudo) . Temos uma conversa muito aberta em que eles podem colocar limites .

Sarah Shahi e Adam Demos em cena de Sex/life Foto: Divulgação/NETFLIX
Sarah Shahi e Adam Demos em cena de Sex/life Foto: Divulgação/NETFLIX

Além dela e dos atores, estavam na cena diretor, operador de som, câmera, camareira e técnico de efeitos especiais. O cargo de coordenadora de intimidade se tornou uma função primordial em filmes ou séries nos EUA, no Canadá e na Europa desde 2018. No Brasil, ainda inexiste. Na falta de um profissional com este papel definido por aqui, a responsabilidade fica nas costas dos diretores.

O trabalho de um coordenador de intimidade consiste em estabelecer protocolos para que todos se sintam seguros e confortáveis nesses tipos de cenas. Esvaziar o set ou garantir que os atores possam se despir com privacidade são pequenas mudanças que profissionais como ela conseguiram.

Casey e outras coordenadoras (as mulheres dominam o ramo) também existem para coibir possíveis abusos físicos ou psicológicos, que começaram a vir à tona com o movimento #MeToo, em 2017. O trabalho começa na leitura do roteiro, evolui para ensaios e se estende até o dia das filmagens.

Profissão em alta

A coordenadora de intimidade Casey Hudecki Foto: Divulgação
A coordenadora de intimidade Casey Hudecki Foto: Divulgação

Este ofício ganhou notoriedade em Hollywood em 2018, por conta da série “The Deuce”, que retrata o submundo do sexo na Nova York dos anos 1970. No papel de uma prostituta que vira uma estrela de filmes pornôs, a atriz Emily Meade pediu aos executivos da HBO uma pessoa no set para ajudá-la nas cenas de maior exposição.

Eles, então, contrataram Alicia Rodes, ex-dublê e também coreógrafa de luta que, em 2016, fundara a Intimacy Directors International, uma organização criada para estabelecer diretrizes sobre cenas de sexo no teatro e em produções audiovisuais. A parceria deu tão certo que Alicia virou consultora da HBO e acabou formando outras profissionais, como Casey, uma vez que a prática se espalhou na concorrência, fazendo a demanda explodir.

— Antes, não existia. Era deixada para departamentos como de figurino ou de dublê— diz Casey. — O problema é que ficava num lugar de “espero que tenha um diretor sensível”, ou “tomara que meu colega de cena respeite meus limites”.

E no Brasil?

É nessa expectativa que vivem muitas atrizes no Brasil. Maeve Jinkings, com 12 longas no currículo, brinca que, quando há um roteiro com muitas cenas de sexo ou nudez, “fica orando às deusas do audiovisual para que o diretor tenha sensibilidade” para conduzir o processo.

— O ideal é que você não precise contar com a sorte, que vá para o set segura de que vamos todos executar um trabalho profissional — diz.

Além de o cargo não existir oficialmente no Brasil, muita gente da indústria nem sabe do que se trata.

— Seria muito importante e de grande valia uma pessoa para ocupar uma posição dessa — diz a atriz Mariana Nunes. — Na falta dessa figura, você se expõe de qualquer jeito: ou no set, ou na negociação.

Acostumada a rodar cenas quentes, a diretora Julia Rezende acha interessante pensar por que essas profissionais se tornaram necessárias.

— Mostra que temos um ambiente em que atrizes não se sentem tão seguras. Afinal, filmamos sexo e nudez desde que o cinema existe.

A forma como a diretora trabalha é semelhante ao olhar que as coordenadoras tentam implementar:

— Não acredito em imposição, sobretudo em cenas de intimidade. Os atores estão ali para construirmos juntos.

'Não somos polícia moral'

Monia Ait El Hadj, coordenadora de intimidade França Foto: Divulgação
Monia Ait El Hadj, coordenadora de intimidade França Foto: Divulgação

Não apenas nos Estados Unidos função de coordenadora de intimidade é primordial nos dias de hoje, principalmente quando se trata de série de grandes produtoras e serviços de streaming. Na Europa e no Reino Unido, também temn sido assim. No Bafta TV deste ano, em junho, que premiou as melhores produções de TV do Reino Unido, Michaela Coel, criadora e protagonista de “I may destroy” (HBO) dedicou sua estatueta de melhor atriz justamente para coordenadora de intimidade Ita O’Brien. “Obrigada por sua existência na nossa indústria, por tornar o espaço seguro físico, emocional e profissionalmente para que a gente faça um trabalho sobre exploração, perda de respeito e abuso de poder sem abusada no processo”, disse Michaela na ocasião.

Na França e na Alemanha, figuras desse tipo vêm ganhando mais importância, especialmente em séries feitas para o streaming. A francesa Monia Aït El Hadj é uma das primeiras a exercer este trabalho por lá. Ela esteve na equipe de “Emily em Paris” e em “Les sept vies de Léa” e “Les liaisons dangereuses”, ambos para 2022, e tem feito um “exercício de educação” com quem dá as cartas do setor audiovisual. Muitos deles, em diversas partes do mundo, ainda encaram a coordenadora de intimidade como alguém que vai “encaretar” a arte.

— Não viemos apagar a sexualidade ou a nudez. Não somos uma polícia moral — diz Monia, que fez treinamento em Los Angeles antes de exercer a profissão em Paris.

Apesar de estar num mercado mais consolidado e maduro para o ofício, a canadense Casey Hudecki acredita que ainda falta informação:

— Não estamos lá para dizer que não pode haver sexo. O objetivo é facilitar e fazer de um jeito que respeite todo mundo. Existem milhões de formas de filmar uma história. Podemos contá-la dentro dos limites dos atores, e assim eles ajudarão a construir isso da melhor maneira.